Poker night

Por muitas voltas que dê, não me consigo lembrar das razões – certamente determinantes – que me levavam a sair à noite. Há um tempo nas nossas vidas em que tal surge como uma obrigação mais do que um plano.

é sexta, é sábado, é ladies night, há uma festa, há música ao vivo, logo tem de ser. quais seriam os motivos? não era seguramente beber mais caro, encontrar o amor da nossa vida, perder anos de vida à procura de estacionamento, enfrentar filas para os sítios da moda, estar com os amigos. talvez a última, embora a noite não seja exclusiva, monopolista desse território.

claro que vivi noitadas memoráveis mas eram necessárias coincidências cósmicas de uma raridade extrema. hoje em dia, tenho uma borga escrupulosamente planeada. a primeira terça-feira de cada mês é dedicada ao poker, na variante texas hold’em. é fácil estacionar, não há pessoas aos gritos na rua, e a casa do nosso anfitrião não poderia ser mais acolhedora. cada amigo entra com 10 euros ao início do serão, convertidos em fichas coloridas que, sobre a mesa e simbolicamente, vestem-se de milhares, milhões. mandam-se vir pizzas, há cábulas com as sequências vencedoras a circular, e uma discussão eterna sobre a música de fundo ideal para a jogatana: tem variado entre tom waits e kanye west, com passagem por snow patrol – aliás, este ecletismo musical reflecte-se bem nas proveniências dos amigos à volta da mesa, de jornalistas a arquitectos, de escritores a modelos, argumentistas, actores. cada conviva é incumbido de trazer bebidas, da singela mini ao ‘hard liquor’. conversa-se, fuma-se, ri-se. custam-me 10 euros estas noites onde esqueço todos os problemas – ainda não ganhei nada, tirando uns brilharetes de principiante envolvendo mãos de full house e flush. um preço bem económico para ser feliz.

o serão tem hora de término marcada, por isso duplicam-se as apostas 15 minutos antes da uma da manhã. posto isso, e religiosamente, ficamos um pouco refastelados na sala, discutindo serenamente estratégias e bluffs. o vencedor do mês é pessoa para levar uns faustosos 40 euros para casa, destino comum a todos – sem porteiros, polícia, bêbedos e confusão avulsa ao barulho. pois… na viagem de regresso, continuo sem me lembrar dos motivos pelos quais saía à noite.

ii – a bronca do gnr

andava o escriba na sua vidinha aqui há coisa de umas semanas quando, em pleno dia e sensivelmente a meio da avenida 24 de julho, depara-se com um oficial autoritário, perdão, da autoridade, a mandá-lo encostar com gestos frenéticos. sucede que este vosso amigo, acabado de almoçar, levava na mão um copo de plástico com um refrigerante (cola) – tendo aproveitado uma paragem forçada do carro na faixa lenta durante um semáforo encarnado.

fiquei da cor do referido sinal de trânsito com o comportamento do senhor gnr e o aparato gerado a atrair transeuntes como moscas para o mel. sempre excessivo no tom e nos modos, desata a inquirir sobre o conteúdo do recipiente. aparentemente alheio às minhas respostas, mete o nariz lá dentro, insiste nas questões, tira-me o copo da mão. à falta de melhor termo, ‘explica-me’ que o copo tem de estar no devido suporte, se este existir no carro. digo-lhe que tem toda a razão, pois claro, mas que tinha parado no vermelho – e tento pormenorizar sobre o quão difícil é, utilizando somente a boca, chegar ao copo para sorver o seu conteúdo quando este se encontra imobilizado no dito cujo suporte. apesar de lhe ter oferecido a bebida, assim como o ónus da prova, pergunta-me se sei o que é o teste do balão. pois com certeza. desata a correr para a bagageira do seu carro com sirenes e cores e importância e, ao ver-me segui-lo por instinto, manda-me estar quieto com a boa educação que um oficial das ss teria decerto perante uma funcionária de limpeza na quermesse. há cada vez mais gente a assistir a isto e estou cada vez mais atrasado para um compromisso profissional – mas que se dane, sou neste preciso momento parte fundamental numa importantíssima acção da autoridade. portugal, para não dizer o mundo, será certamente um sítio melhor quando este episódio estiver resolvido.

resoluto, o excelentíssimo senhor gnr pede-me que sopre, sopre mais, repita o sopro. para seu aparente espanto, a maquineta acusou um redondinho zero. mas ainda não se ficou nem recuperou a calma, jurando a pés juntos que se tivesse acusado determinados algarismos por ele decerto imaginados/desejados, me levaria detido sem hesitar. não aprecio pontos de exclamação mas imagine o leitor aqueles que quiser, em todas as ‘deixas’ aqui atribuídas ao referido cavalheiro. posto isto, ainda me ordenou com o mesmo registo tronitruante que tirasse o carro dali, como se não tivesse sido ele a mandar-me encostar.

pois, se… há tanto para dizer sobre essa palavrinha de duas letras apenas, sr. gnr. por exemplo, se você não tivesse a faca e o queijo na mão; se não estivesse armado; se não se apresentasse com as costas quentes; se não estivessem pessoas a ver; se eu por acaso tivesse perdido a cabeça; se se se.

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