Ou o BCE ou… a tragédia europeia?…

Ao ponto a que a crise da dívida soberana europeia chegou, não há fundo de resgate que consiga acalmar os receios dos mercados, e só uma ‘grande bazuca’ resta à Zona Euro: permitir que o Banco Central Europeu (BCE) anuncie que está pronto a comprar ilimitadamente dívida soberana dos Estados-membros.

ou seja, que se torne o seu lender of last resort (credor de último recurso). porquê?… com grécia, irlanda e portugal ao abrigo de programas de assistência económica e financeira, as atenções dos ditos mercados viraram-se para espanha e itália, que representam quase 28% do pib da zona euro (11% espanha, 17% itália) – quase cinco vezes mais do que os menos de 6% que, em conjunto, pesam as economias grega, irlandesa e portuguesa. só espanha tem necessidades públicas de financiamento próximas de 500 mil milhões de euros nos próximos três anos, exactamente a quantia de que dispõe o novo fundo de resgate (mecanismo europeu de estabilidade, mee). não admira o nervosismo generalizado… mas, ao ponto a que se chegou, qualquer aumento da capacidade do mee será sempre visto como limitado e não inspirará confiança… depois de espanha, os mercados testarão itália, e depois frança, e depois… não há fundo de resgate que resista, por maior que seja a sua dimensão. é o resultado da forma displicente e reticente, sempre behind the curve, como a crise foi gerida desde o início pelos principais decisores políticos da zona euro, sobretudo a alemanha (quem realmente manda, goste-se ou não).

há dois anos, apenas com a grécia em xeque, 500 mil milhões de euros teriam provavelmente chegado para acalmar a situação… agora, com o efeito dominó… só o bce. porque tem a ‘grande bazuca’: pode emitir moeda na quantidade que for preciso. e bastar-lhe-ia anunciar que estaria ‘lá’ para intervir quando fosse preciso no mercado secundário (o que os seus estatutos e os tratados europeus permitem). penso que o efeito psicológico seria tal que nem um único euro adicional seria aplicado pela autoridade monetária europeia em dívida pública. estaria o bce, afinal, a adoptar a mesma postura do fed, do banco de inglaterra, do banco do japão ou do banco da suíça, para só nomear alguns dos bancos centrais mais conhecidos do mundo… resultado: os investidores acalmar-se-iam e os juros desceriam… veja-se, aliás, o efeito da operação de refinanciamento de longo prazo do bce, (ltro, long term refinancing operation): nos dois primeiros meses de 2012, a injecção de liquidez no sector financeiro (mais de 1 bilião de euros a três anos com juros favoráveis) repercutiu-se, em boa medida, na compra de títulos da dívida pública de vários países europeus (apetecíveis por se encontrarem com grandes descontos e rendibilidades elevadas, sobretudo nos países em maiores dificuldades). os preços dos títulos subiram, os juros desceram e criou-se a ilusão de que o pior da crise já lá ia. um ‘estado de graça’ que acabou em março… quando a acção do bce diminuiu drasticamente. mas não só: também devido à desastrada gestão das notícias sobre as contas públicas espanholas (passadas e futuras) feita por rajoy, anunciando um défice bem maior do que o previsto para 2011 (no fim de fevereiro) e, unilateralmente, um relaxamento dos objectivos futuros no próprio dia (2 de março) da assinatura do ‘tratado orçamental’ em bruxelas (!); e, por fim, devido à insuficiente dotação financeira decidida para o mee. a hipersensibilidade dos mercados fez o resto…

pode-se argumentar: mas assim desapareceria a pressão para os países ‘prevaricadores’ colocarem as suas contas em ordem e se reformarem!… discordo: o novo ‘tratado orçamental’ está em processo de ratificação nos 25 países europeus que o assinaram (portugal foi o primeiro) e, aprove-se ou não as metas e os procedimentos nele contidos, vai claramente no sentido de uma maior integração económica – complementando a monetária (existente desde o início do euro).

e sejamos claros: mesmo que fosse preciso emitir muita moeda, as pressões inflacionistas – que tanto preocupam a alemanha… – na actual conjuntura recessiva seriam… quase nulas!…

já deixar perpetuar a actual situação é não só muitíssimo penalizador para a economia espanhola como também para a economia europeia em geral: as bolsas derretem (com destaque para a espanhola) e destroem riqueza em doses massivas, a confiança evapora-se, o clima económico e social deteriora-se e cresce o risco de perigosas tensões no nosso continente.

como referiu recentemente o secretário-geral da ocde, angel gurría, a europa ‘precisa de uma firewall, uma rede de segurança que seja suficientemente grande, forte, poderosa, resiliente e credível’. de tal forma, acrescento eu, que nunca tenha que ser usada. é o bce ou, em alternativa, a tragédia europeia.

*economista, ex-secretário de estado do tesouro e das finanças