Angola: Enterrar o passado, esquecer o rancor

As marcas da Independência sobressaem da história de Paulo Tomás Cudinhanza, pela fuga para Luanda. Nascido no município do Kalandula, em Malanje, aos 13 anos foi forçado a abandonar a sua terra natal para sobreviver à guerra.

Não estranha por isso que as suas memórias sejam dominadas pelo conflito que assolou o país. Paulo Tomás recorda, por exemplo, que decorria o mês de julho de 1983, quando no Cuale, sua comuna natal, os moradores presenciaram fortes combates entre militares do MPLA e da UNITA, momento marcado pela captura de dois dos seus irmãos pelo exército liderado por Jonas Savimbi.

Angustiado, o jovem que nasceu no dia da Dipanda radiografou para a Caju os acontecimentos daquele fatídico dia. “Eram provavelmente três horas da manhã quando os ataques começaram. Não sei precisar quem começou com a caça às bruxas, porque se dizia que havia informantes dos dois lados na nossa aldeia. Ficámos em pânico, mas felizmente muitos conseguiram escapar à morte, embora outros tenham sido abatidos pelo caminho. Foi algo muito triste de testemunhar, principalmente porque era uma criança inocente”, recordou o malanjino, sem conter as lágrimas.

Em função das constantes rusgas clandestinas que eram feitas, o pai de Paulo decidiu enviá-lo para a sede provincial de Malanje – mas não por muito tempo –, sendo que o propósito era chegar à capital, onde as coisas estavam mais calmas. “O que me fez sair de Malanje para Luanda foi a guerra, porque sendo homem estava sujeito a ser capturado e treinado, como aliás aconteceu com dois irmãos mais velhos. O homem safou-se, já a menina até hoje anda desaparecida, uma situação que deixou o meu falecido pai muito instável”, conta.

Quando por fim chegou a Luanda, em 1988, as coisas também já estavam a ficar feias, porque, segundo explica, quem tivesse porte físico avantajado ou idade militar estava ‘condenado’ a servir o exército. “Felizmente não foi o meu caso porque sempre fui franzino”.

Ultrapassado o medo do recrutamento militar, Paulo teve de lidar com a adaptação: a vida não era fácil para quem viesse do interior, principalmente para quem, como ele, não tivesse família estruturada na capital. “Tive uma infância dura, faltou-me quase tudo. Vivi longe dos meus pais”.

As inúmeras provações tornaram ainda mais marcante a conquista da paz, defende Paulo, sem esquecer o momento em que assistiu a um abraço impensável até 2002: entre os dois irmãos que estavam de costas viradas, um afeto à UNITA, outro ao MPLA. “Hoje quando ouço discursos de incitamento ao retorno à guerra fico triste, porque só fala assim quem nunca passou por grandes dificuldades devido ao conflito”.

Reconciliação nacional

Pai de cinco filhos e a trabalhar como auxiliar administrativo do Comando Geral da Polícia Nacional, Paulo Tomás repete que a guerra só trouxe retrocesso à vida do país e dos seus cidadãos, citando o seu exemplo como representativo daquela que foi a realidade de muitos angolanos.

“Sou técnico médio de ciências económicas e jurídicas e desejo um dia ingressar numa universidade, mas as dificuldades financeiras não me permitem alcançar este sonho, porque o meu salário mensal é inferior a 30 mil Kwanzas”, lamenta, sem perder a esperança de uma carreira como jurista ou historiador.

Apesar das contrariedades, que só permitem viver debaixo de um teto arrendado, Paulo nota que o cenário já foi mais negro, tendo chegado a vender diversos produtos nas ruas de Luanda para sustentar a família. “O país estava em guerra, eu era desempregado e vivia com a minha irmã, mas sabia que ela também não tinha condições para garantir a alimentação da família e a minha, por isso tive de ajudar”.

Quanto à possibilidade de regressar à terra natal, Paulo admite que depois da paz pensou nisso, mas os planos permanecem adiados por entender que o país ainda está muito centralizado.

Ainda sobre o futuro, o malanjino revela que ambiciona construir um orfanato que venha a servir para albergar menores desfavorecidos, tal como ele foi um dia. “Como cristão, desejo ser responsável de um centro que cuide de crianças, para evitar que passem pelas dificuldades que passei e que continuo a passar. Acredito que assim estarei a ajudar a edificar uma sociedade não violenta”.

Na visão de Paulo Tomás, Angola deu passos importantes desde a conquista da paz, e embora assinale que “o progresso é visível”, o funcionário da Polícia Nacional considera que ainda falta muita coisa. “Há países que não têm petróleo, mas sobrevivem da agricultura, turismo e impostos”.

Para os próximos anos, este filho da Dipanda dá as coordenadas: os políticos e a população devem enterrar o passado, esquecer o rancor, agir em prol de um bem maior que se chama Angola. “Só assim estaremos a fazer a reconciliação nacional, porque o país é de todos que amam essa terra. Tenho dito às pessoas que não esqueçam que o fim da guerra no nosso país foi uma conquista nossa. Antes, nem os mediadores de conflito o conseguiram”.