A carta, o primeiro contrato e o testamento

Quando chegou ao notário público em Viseu, percebeu que o funcionário olhava surpreendido para ela, que com apenas 27 anos estava ali para autenticar o seu testamento. O conteúdo do documento parecia ainda mais estranho. Estipulava que queria ser sepultada toda nua, só com um lençol branco a envolvê-la. E não tinha outra saída. Carla…

Tudo começa com o pedido de adesão, que é feito por carta dirigida ao Prelado, que vive em Roma, e que todos tratam por “Padre”. Já os supranumerários escrevem ao vigário regional português. (…). A entrada processa-se oficialmente ao fim de seis meses, e só depois de a hierarquia autorizar. Passado um ano, é dado mais um passo, fazendo-se o primeiro juramento, que na realidade é um contrato com a Prelatura: o candidato compromete-se a respeitar as regras, a fazer apostolado e a cumprir as obrigações, como ajudar financeiramente a Obra; do outro lado recebe a garantia de que terá apoio e formação espiritual e religiosa. Ao longo de cinco anos fica-se nesta fase intermédia. (…) “Está na hora de ires ao notário.” O aviso é dado por um dos diretores das residências e significa ter chegado o momento de dar o passo que marca a integração definitiva na única Prelatura Pessoal da Igreja Católica. (…)

Feito o testamento, este é guardado nos cofres das residências da organização religiosa. Nenhum membro recebe uma cópia. “Ficou nas mãos da diretora e não me deram”, lembra a ex-agregada Carla Almeida. Só os que prometem ser celibatários são obrigados a fazer este testamento. (…)

A verdade é que só depois de este estar lacrado é que se realiza a cerimónia que vai oficializar a “fidelidade” e entrada definitiva no Opus, o último e mais importante passo na adesão. O ritual, que tem de ser escrupulosamente cumprido, começa num recanto à entrada da capela das residências. Ajoelhado junto a um crucifixo de madeira preta, conhecida entre os membros como “cruz de pau”, e uma imagem da Virgem Santíssima, o candidato lê alto e em latim um papel que lhe dão para a mão. Ali consta uma declaração sobre o vínculo contratual entre ele e a organização religiosa, estando definidos os direitos e deveres de cada uma das partes. “Eu, em pleno uso da minha liberdade, declaro que tenho o firme propósito de dedicar-me com todas as minhas forças à busca da santidade e a exercer o apostolado, segundo o espírito e a praxis do Opus Dei, e obrigo-me durante toda a minha vida a permanecer sob a jurisdição do Prelado e das outras autoridades da Prelatura e a cumprir todos os deveres de membro, a observar as normas pela quais se rege a Prelatura, assim como as prescrições legítimas do Prelado e restantes autoridades competentes da Prelatura, no que se refere ao seu regime, espírito e apostolado.” Seguem-se as palavras de compromisso da pessoa que ali está em nome do vigário regional, o homem que manda no Opus em Portugal. “Eu, em representação do Prelado, declaro que desde a tua incorporação o Opus Dei obriga-se a proporcionar-te uma contínua formação religiosa, espiritual e apostólica, com especial apoio pastoral por parte dos padres da Prelatura, e a cumprir as restantes obrigações que determinam as normas internas.” (…)

Lido o contrato, seguem para o interior da capela. Rezam-se as Preces, uma oração exclusiva do Opus, e o sacerdote, vestido com estola e roquete, dá início a mais um ritual: pega num anel de ouro, levado pela pessoa que ali está a fazer o compromisso, e benze-o. Logo depois coloca-o no dedo anelar da mão esquerda do fiel do Opus. Tal como acontece nas alianças de casamento, esta também tem gravada no interior a data em que se realizou a cerimónia. O anel nunca deve ser retirado, mandam as orientações internas, por ser uma “recordação permanente do compromisso de amor” que se acabou de fazer.

Todos os que no Opus se comprometem a viver na pobreza e no celibato usam este anel. Já os supranumerários, que podem casar e ter filhos, não seguem este ritual nem fazem, geralmente, esta integração definitiva. Para se conseguir ter o anel posto no dedo, tem de se passar por várias provas ao longo dos anos. Antes de alguém ser admitido, fazer o primeiro juramento ou avançar para o notário e realizar o testamento, tem sempre uma entrevista com um dos homens mais importantes da organização. (…) O objetivo desta conversa é verificar se o membro está a viver de acordo com as normas da Obra e a cumprir os sacrifícios e obrigações definidas.

Além disso, a passagem de cada pessoa de grau em grau requer sempre uma autorização do líder português do Opus. Para o ajudar a decidir são feitas votações entre os elementos que compõem o seu governo interno. (…) Determinantes para os votos são os documentos que os chefes fazem sobre a vida dos candidatos. Ao longo dos anos são elaborados relatórios sobre as pessoas que integram o Opus Dei. Neles constam dados pessoais e profissionais e também considerações sobre atitudes e traços de caráter.

Quando está em causa a votação para se autorizar a passagem a níveis de integração mais elevados, é comum que os relatórios expliquem se o candidato cumpre ou não o rigoroso plano de vida definido. Nessa informação escrita consta também quais são, ou foram, os maiores perigos e tentações da pessoa analisada. Os dados são recolhidos e enviados pelos diretores dos centros, que vão registando tudo o que veem, ouvem ou descobrem sobre cada um dos elementos. Um ex-membro resume assim o que se passa: “Somos todos monitorizados 24 horas por dia.”

* Excerto do livro O Fim dos Segredos, da jornalista do SOL Catarina Guerreiro