Não basta cantar

Tem de haver outra maneira de viver. Foi isso que a Assembleia da República disse na passada terça-feira. Aconteça o que acontecer, espero que a mensagem não se dissolva na espuma da resignação, como tantas e tantas vezes acontece em Portugal: a grandes emoções sucedem-se maiores apatias.

País em montanha-russa, capaz de desenrascar tudo e de concluir quase nada.

O governo preparado pelos partidos de esquerda sofre desse vício lusitano da incompletude; a verdade é que não houve capacidade para construir uma maioria de governo inexpugnável, com a participação efetiva dos apoiantes.

Todos aqueles que, como eu, já se envolveram em ações cívicas sabem que são sempre muitos os apoiantes de bastidores, e mais ainda os apoiantes clandestinos (“eu apoio-vos mas não posso aparecer por causa do meu chefe”, e já seria bom que o dissessem deste modo, em vez de se engasgarem na cobardia), mas pouquíssimos os dispostos a meter, de facto, a mão na massa e arcar com o trabalho, a responsabilidade e as consequências.

O povo gosta de cantar a Grândola e de sentir as lágrimas subindo. Nisso não é muito diferente do escol do “pátio” de que fala Maria João Avillez: esses ouvem a ária final da Traviata e choram como se, durante cinco minutos, fossem pobrezinhos e tuberculosos.

Terminadas as cantorias, regressa-se à vida normal, que em Portugal continua no esquema inglês do século XIX: uns nasceram na cave para servir e na cave servindo continuam, outros nasceram em salões luminosos e por lá vivem dançando entre os seus pares.

Um estudo recente da Universidade Nova de Lisboa revelou que o nível de escolaridade das mães se reflete nos resultados escolares dos filhos – e que, nos últimos 6 anos, a situação nas regiões mais desfavorecidas piorou, ou seja: a escola portuguesa não consegue ser veículo de mobilidade social.

Para acabar com este fado, há que fazer o que se faz nos Estados Unidos da América: educação gratuita até ao fim do ensino secundário (incluindo todos os livros e manuais); apoio escolar, bolsas de acesso ao ensino superior para os melhores alunos e não para os filhos de pais bem colocados na vida.

Ainda estamos no país em que, em caso de pobreza, os filhos vão estudar enquanto as filhas lavam escadas. Quando essas filhas forem mães, os seus filhos serão penalizados pela falta de estudos delas.

A ignorância e a pobreza são contagiosas. Os chamados ‘bairros sociais’ comprovam-no, desde há décadas: criam guetos de desalento e violência.

A sublime paisagem da ilha Terceira é rasurada aqui e ali por bairros desses, numa desafinação que, mais do que estética, representa uma nódoa ética que nos compromete a todos.

A pobreza torna-se particularmente visível nesta ilha de lagos, florestas, pastos imensos e enseadas de uma beleza arrasadora.

Decorre ali, na Praia da Vitória, o festival Outono Vivo, composto por debates, exposições e espetáculos em torno de uma feira do livro. As palavras fazem avançar o mundo, como se viu esta semana; a passagem de um ‘não’ para um ‘sim’ abre um novo universo. Ao cair da noite, um bando de gaivotas-bebé experimenta nadar em conjunto na espuma das ondas, na Praia da Vitória. Lançam-se como um novelo branco, depois afastam-se umas das outras com o movimento suave do mar, e voltam a juntar-se para flutuarem na próxima rebentação.

Assim estamos: a tentar nadar em conjunto. A tentar acreditar que é possível cruzar as ondas. A flutuar, sonhando voar.

inespedrosa.sol@gmail.com

Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 13/11/2015