Eu cá sou bom

Numa questão de dias, Cristiano Ronaldo assumiu que na sua cabeça não há melhor futebolista do que ele, José Mourinho fez saber que já não tem nada a aprender com ninguém e Jorge Jesus declarou que, nos tempos que correm, a sua única referência enquanto treinador é ele próprio.

Vindas de quem vêm, não se estranham as afirmações ao jeito de ‘Eu cá sou bom’, como cantam os Xutos & Pontapés. Há muito que estes três grandes nomes do futebol português renunciaram ao politicamente correto, indiferentes a quem os rotula de arrogantes. Mas impõe-se questionar: terão eles uma suprema necessidade de alimentar o ego na praça pública, como sugerem os críticos, ou existe um propósito de maior alcance por trás destes autoelogios?

“Na maioria das vezes devem ser lidos como uma estratégia de afirmação. ‘Eu sou bom e não me importo de dizer que sou bom’, observa Jorge Silvério, mestre em psicologia do Desporto, pegando no exemplo de Mourinho no Chelsea.

Os maus resultados agudizam-se como nunca no percurso do técnico português, mas nas últimas semanas já disse que era o “melhor treinador da história do clube” e que neste ponto da carreira não recebe lições de ninguém. No entender de Jorge Silvério, “é como quem diz: olhem para o meu currículo e vejam o que já consegui”.

Para Manuel Sérgio, antigo professor universitário de Mourinho e amigo pessoal de Jorge Jesus, o discurso autoconfiante dos dois treinadores, assim como a assertividade de Ronaldo sempre que o convidam a comparar-se a Messi, explica-se pela competividade do mundo atual.

“O futebol de alta competição reproduz e multiplica as taras da sociedade concorrencial e capitalista. Os produtos que aparecem na televisão são sempre os melhores e no futebol é igual, todos querem ser os melhores”.  

Entre o querer e o assumir que o são vai uma longa distância. Messi e Guardiola, os maiores rivais de Ronaldo e Mourinho, nunca vieram a público dizer que se sentem os melhores do mundo. Há quem os apelide de cínicos, mas a maioria gaba-lhes a humildade.

Já Ronaldo, Mourinho e Jesus preferem um discurso mais fraturante e desafiador, ao melhor estilo norte-americano. Charles Barkley, estrela da NBA dos anos 90, definiu-o assim: “Tu tens de acreditar em ti próprio. Que diabo, eu acredito que sou o tipo mais bonito do mundo e sou capaz de ter razão”.

Se não te impões, ficas mais perto de ser triturado e perder – é a mensagem nem sempre compreendida pelos adeptos. O ex-tenista Jimmy Connors, numa linguagem em que a estética dá lugar ao bélico, saiu-se um dia com um desabafo elucidativo sobre o modo como quem está de fora olha o mundo da alta competição: “As pessoas parecem não compreender que estamos no meio de uma guerra tramada”.

Na opinião de Daniel Sá, diretor do Instituto Português de Administração e Marketing, “é positivo” que os homens do desporto assumam um posicionamento em causa própria, pois “cria em torno deles uma imagem de confiança e sucesso” que atrai as marcas.

“Se passassem repetidamente a mensagem ‘eu sou um vencedor’ e depois na prática não o fossem, teríamos um problema grave porque as empresas não se querem associar a promessas não cumpridas. Mas Ronaldo, Mourinho e Jesus, pelo percurso que apresentam, têm legitimidade para usar estes argumentos”, sustenta o autor de vários estudos sobre o impacto mediático das grandes figuras do desporto.

Ao contrário do que sucede na América, Jorge Silvério admite que do lado de cá do Atlântico há tendência para estes comportamentos “serem mal vistos”, mas defende que “não se devem confundir com arrogância” e dá o exemplo do tricampeão olímpico Usain Bolt, que “também tem afirmações do mesmo género”.

Quando muito, acrescenta o especialista em psicologia do Desporto, servem para tentar desestabilizar adversários. “Mas tanto podem fazer o outro sentir-se ameaçado e constrangido como dar-lhe uma motivação extra para vencer alguém que se diz tão bom”, nota. 

Manuel Sérgio é ainda mais incisivo sobre as reações negativas que Ronaldo, Mourinho e Jesus enfrentam ao chamarem a si os melhores adjetivos: “É claro que fazerem isso lhes traz anticorpos, mas é assim o mundo do alto rendimento e eles sem anticorpos não vivem”.

E Daniel Sá dá uma última achega no mesmo sentido, ao valorizar a “imagem sólida” que essas mensagens transmitem em detrimento do “risco de algumas pessoas verem neles pretensiosismo e egos exacerbados”. O especialista em marketing desportivo justifica-se com o facto de as marcas irem atrás deste tipo de pessoas. “Até mesmo o Jorge Jesus, que estava muito atrás em relação a Mourinho e Ronaldo no campeonato mediático, porque o mercado é muito mais pequeno em Portugal, tem aparecido nos últimos tempos em plataformas que não eram habituais”.

Para os três pesos pesados do futebol português chegarem ao nível de autopromoção de Charles Barkley quase só lhes falta elogiarem o que veem ao espelho. Ou talvez não. Ronaldo já o fez quando afirmou que era “bonito”, Jesus tem andado lá perto ao expor as idas ao cabeleireiro e, quanto a Mourinho, os fatos com que vai a jogo aproximam-no por si só do culto da imagem. Mesmo assim, seria improvável a ex-vedeta da NBA sentir-se ultrapassada num concurso de beleza. No desporto profissional, tudo é competição e, como diz Manuel Sérgio, o que importa “é ser o melhor”. Em tudo.    

rui.antunes@sol.pt