Carta aos meus netos no 25 de Abril

Filhotes, hoje vou contar-vos uma história, mas das verdadeiras, como vocês costumam pedir.

como todas as histórias, tem muitos lados por onde pode ser vista e contada. como o caleidoscópio de que o joão gosta tanto.

a minha forma de a ver é marcada pelo facto de, apesar de tudo, o 25 de abril de 1974 ser hoje ainda o dia mais importante da minha vida, depois do dia em que o vosso pai nasceu.

estou a ver as vossas carinhas escandalizadas a perguntar:

– mais importante do que o dia em que nós nascemos, vó?

– sim e não. passo a explicar.

a decisão do vosso nascimento não dependeu de mim, dependeu dos vossos pais. mas o desejo de mudar um país tinha raízes no meu coração desde o tempo em que eu tinha a idade do joão, e, de uma forma mais esclarecida, a idade da gi.

esse desejo era de muita gente, novos e velhos, trabalhadores da terra e das fábricas, professores e alunos.

alguns foram presos, torturados e mesmo mortos por defenderem as ideias nas quais acreditavam.

a avó biá, o avô carlos e a tia madalena, que estava grávida, também estiveram presos. sabem porquê? porque os maus, que nesta história eram os pides, queriam que eles dissessem onde estava o avô pestana. por esse tempo ele pertencia a um grupo que os pides queriam exterminar – que se chamava luar.

a avó biá não foi maltratada como outras mulheres foram na prisão. o seu sofrimento vinha de ouvir a tia tossir, no fundo do corredor da prisão de caxias. como ela estava grávida, a avó tinha medo que alguma coisa acontecesse a ela ou ao bebé.

a avó biá nunca se meteu em política, mas sabia que não se traem os amigos ou a família, mesmo que não percebamos o porquê das suas escolhas. sabia, sim, que o avô pestana acreditava que estava a combater por aqueles que trabalhavam o dia inteiro e não tinham hospitais como nós temos agora, escolas, casas ou mesmo comida.

agora estou a imaginar-vos a perguntar:

– vó, mas agora também há miúdos que não têm comida nem casa e até vivem em barracas. então, para que serviu o 25 de abril?.

– para muitas coisas que vos irei contando.

o 25 de abril serviu sobretudo para podermos denunciar todas as situações que nos parecem injustas, e ajudarmos a resolvê-las se pudermos.

serviu para eleger livremente quem nos governa, mesmo que mal.

serviu para sermos uma democracia, com todos os limites que elas têm.

daqui por cinco anos a gi já pode votar, por isso vocês têm de ir aprendendo o que é isso de ’democracia’ e como se constrói uma cada vez melhor.

neste 25 de abril, enquanto ainda é feriado, os que desejaram muito o outro – de há 38 anos – estão muito preocupados. os jornais publicaram um aviso de características muito graves: «tolerância zero nas manifestações do 25 de abril».

em 38 anos nunca precisámos da polícia nas comemorações do dia da liberdade.

ao que isto chegou! estejam atentos aos próximos capítulos.

beijo,