De Paris à Madeira

Já aqui confessei que, desde a adolescência, Paris se tornou a minha cidade favorita. E é por isso que, há longos anos, a minha mulher me oferece como prenda de aniversário uma visita a esse lugar onde nos habituámos a desfrutar sempre dias felizes.

Aconteceu, como de costume, na primeira semana de novembro, poucos dias antes dos atentados bárbaros que converteram de novo Paris – com a memória ainda muito viva dos ataques terroristas de janeiro passado – na capital do horror, mas agora a uma escala esmagadora. E é o pesadelo desse horror que me vem perseguindo com uma intensidade que porventura não seria a mesma se essa capital não fosse Paris. 

Mas, para além dos meus sentimentos pessoais, a tragédia de Paris despertou-nos para o mais terrível desafio que a França e a Europa vão ter de enfrentar no futuro imediato. Ora, isto acontece enquanto prossegue a avalanche dos refugiados da guerra do Médio Oriente. 

Por toda a parte, vão crescendo o medo e o ensimesmamento dos Estados europeus, encerrados mais e mais no interior das suas fronteiras supostamente inexpugnáveis às ameaças que não vêm só de fora, mas também de dentro. Com efeito, eram de nacionalidade francesa os assassinos de 13 de novembro.

É uma França muito vulnerável, com um poder político extremamente fragilizado pela persistente impotência de Hollande em enfrentar a deriva de uma direita nacionalista e xenófoba. Ora, ultrapassado pelos acontecimentos, Hollande ensaia agora uma fuga em frente através daquilo que Le Monde designa por «viragem securitária». 

Onde começa a firme e indispensável resposta que um país em guerra tem de dar aos seus implacáveis inimigos e onde acaba – de cedência em cedência aos demónios da insegurança e ao crescimento eleitoral da extrema-direita – o espaço das liberdades fundamentais que são o mais precioso capital da democracia? Não resultará isso, afinal, num triunfo daqueles que se pretende vencer?

Até onde irá a extensão do estado de emergência, a restrição das liberdades e as alterações constitucionais favoráveis a um maior controlo policial e militar sobre a sociedade, sem pôr em causa o Estado de Direito? Ultrapassado por um feitiço que não conseguirá controlar, não estará Hollande a fazer a cama onde irão deitar-se potenciais aspirantes a ditadores como Marine Le Pen?

Dito isto, o desafio terrorista é apenas o derradeiro de uma série que se tem colocado à ordem europeia – uma ordem abalada pela paralisia institucional e a crise económica, incluindo os dogmas orçamentais que Hollande já anunciou não ir cumprir em nome da primazia da segurança.

Aliás, se a Europa está mais dividida do que nunca e a eurofobia alastra nos países de Leste ou no Reino Unido, as vagas migratórias vieram exacerbar, como temos visto, essa tendência. 

Daí a reviravolta verificada na Alemanha, onde Angela Merkel se viu obrigada a recuar – depois de ver o seu poder ameaçado pelos ministros Schäuble e Maizière – na política de abertura aos refugiados. 

Só que não existe nenhuma estratégia – a não ser a construção de sucessivas fortalezas dentro de uma outra fortaleza chamada Europa – para enfrentar o problema. Que será feito dos candidatos a asilo? Ficarão a pairar como fantasmas em parte incerta, enquanto a ameaça terrorista se torna a prioridade máxima do que resta da União Europeia (UE)? 

Os 28 Estados membros da UE tomaram, por unanimidade, uma decisão inédita: a de responder positivamente ao pedido de assistência militar por parte da França. Mas que será feito dessa bela demonstração de unidade quando chegar a hora de verdade da guerra contra o Estado Islâmico que agora se desenha com as alianças mais improváveis? 

A Rússia assume aí um protagonismo a que os Estados Unidos parecem ter renunciado e aproveita para fazer esquecer o seu apoio ao sanguinário ditador sírio Assad e o seu papel na crise ucraniana. É a realpolitik no seu esplendor.

Que o inimigo principal é o Estado Islâmico está fora de causa. Mas que o preço a pagar pela sua destruição seja abdicar de princípios essenciais e da memória histórica não deixa de ser um revelador sinal dos tempos desesperados que atravessamos. 

A dimensão da tragédia parisiense reduziu os nossos problemas políticos domésticos a uma irrisória pequenez. Mas essa pequenez torna-se ainda mais patética quando, poucos dias depois do regresso de Paris, venho encontrar na Madeira um Presidente da República que parece ter escolhido esta amena região insular para exilar-se das suas angústias decisórias: em 2013, por causa da «irrevogável» demissão de Portas; agora, para adiar o momento em que indigitará Costa ou o tal governo de gestão que, de facto, ninguém quer assumir. O reverso da tragédia de Paris será, portuguesmente falando, a comédia da Madeira?