Eis o tempo dos falhanços vitoriados

Exactamente quando é que aconteceu? Entre blogues, iPhones, Go-Pros, redes sociais, e permanente imitação da realidade – quando foi? Onde estão hoje os símbolos, há tanto substituídos por réplicas de réplicas?

mais tempo dedicado aos amigos virtuais do que aos reais, jogos online, comunidades sem sede física nem sede de viver. a violência pré-formatada nos alinhamentos noticiosos, tornando-se murmúrio neutro que nem incomoda a refeição. a moda cada vez mais revivalista, retro, recuperando às cegas um tempo não vivido – talvez num esforço ingénuo de reencontrar a fonte da juventude. os avanços médicos e tecnológicos e as tendências dos costumes que fazem crer que os 50 são os novos 40 e os 40 os novos 30 e os 30 os novos 20 e, no meio desta azáfama regeneradora, os idosos cada vez mais velhos e esquecidos, confortados quanto muito por cuidados paliativos bem-intencionados apenas. quando foi que nos esquecemos do trabalho, da resiliência, do suor, embriagados por estrelas instantâneas, castings de pacotilha e falhanços épicos tornados feitos de monta? sim, hoje qualquer cromo que se estampe à vista de milhões no youtube é desejado para reuniões no dia seguinte. anúncios, contratos, entrevistas; o acaso travestido de mérito, as massas adoradoras do bezerro dourado, o mundo ao contrário.

rua paralela: sonhar ao longe

a feira do livro deu-nos a nesga perfeita de luz e quente para o momento, na praça laranja redondinha de gente, em que apresentámos o livro de jorge serafim e josé francisco, sonhar ao longe (ed. opera omnia). escrever para crianças deve ser um dos maiores desafios à disposição de quem se apresta a desafiar páginas em branco. tive uma pequena experiência, há poucos anos, no âmbito de uma antologia de contos infantis, e poucas vezes terei hesitado tanto no esforço para cumprir os caracteres encomendados. a cada frase perguntamo-nos se a ideia estará clara, se determinado substantivo não será complicado demais, imaginando um público potencial de crianças austeras na sua exigência, prontas a castigar justamente o escriba com os seus desdém e desinteresse.

no caso concreto, serafim – contador de histórias profissional e comediante, acertou na mouche. desde logo, pelo ângulo: um menino sonha acordado desde o parapeito da janela no seu quarto. e, por viver numa cidade feia, imagina-a diferente, como desejaria que fosse. num esforço autoral que se percebe gémeo, as ilustrações a par e passo de francisco dão-nos a dimensão e a beleza perfeitas para o sonho do protagonista. a prosa, que é poética sem alguma vez resvalar para o piegas, brinca com as palavras e cria neologismos à mia couto – como ‘desimaginado’ – e é um conto de regresso à pureza, à inocência, ao tempo em que a casa era verdadeiramente um lar, o mundo dentro do qual problema algum violava as fronteiras. uma passagem:

«acho que as casas também fazem parte do corpo das pessoas. uma parte que se entranha em nós e nos ampara, como um porto o faz, quando os homens do mar regressam às mulheres da terra».

não se esperaria isto de um comediante, e esse é outro ponto a favor desta pequenina obra-tesouro. destrói o rótulo, o preconceito, e faz-me recordar a própria casa do autor, aconchegante e mimada, em beja, onde passei uma noite no pátio entre amigos a devorar tangerinas directamente da árvore – pensando sem querer no tempo longínquo em que pertenci à doce casa açoriana.

falei em pureza e inocência, e regresso aos conceitos para defendê-los de qualquer ameaça velada de cliché. é que o menino protagonista, o sonhador ao longe, fá-lo desde o parapeito da janela. e o que é uma janela se não o ecrã original? onde a papinha não vem toda feita, como na tv ou no pc, e o telecomando que nos guia é mental, cada canal disponível é um neurónio dedicado à imaginação.

comprem e levem para casa esta peça de amor e um quarto de hora de prazer e tempo ganhos, nem uma palavrinha a mais nem a menos: servirá às crianças tão bem como aos adultos adiados.

lfborgez@gmail.com