mais tempo dedicado aos amigos virtuais do que aos reais, jogos online, comunidades sem sede física nem sede de viver. a violência pré-formatada nos alinhamentos noticiosos, tornando-se murmúrio neutro que nem incomoda a refeição. a moda cada vez mais revivalista, retro, recuperando às cegas um tempo não vivido – talvez num esforço ingénuo de reencontrar a fonte da juventude. os avanços médicos e tecnológicos e as tendências dos costumes que fazem crer que os 50 são os novos 40 e os 40 os novos 30 e os 30 os novos 20 e, no meio desta azáfama regeneradora, os idosos cada vez mais velhos e esquecidos, confortados quanto muito por cuidados paliativos bem-intencionados apenas. quando foi que nos esquecemos do trabalho, da resiliência, do suor, embriagados por estrelas instantâneas, castings de pacotilha e falhanços épicos tornados feitos de monta? sim, hoje qualquer cromo que se estampe à vista de milhões no youtube é desejado para reuniões no dia seguinte. anúncios, contratos, entrevistas; o acaso travestido de mérito, as massas adoradoras do bezerro dourado, o mundo ao contrário.
rua paralela: sonhar ao longe
a feira do livro deu-nos a nesga perfeita de luz e quente para o momento, na praça laranja redondinha de gente, em que apresentámos o livro de jorge serafim e josé francisco, sonhar ao longe (ed. opera omnia). escrever para crianças deve ser um dos maiores desafios à disposição de quem se apresta a desafiar páginas em branco. tive uma pequena experiência, há poucos anos, no âmbito de uma antologia de contos infantis, e poucas vezes terei hesitado tanto no esforço para cumprir os caracteres encomendados. a cada frase perguntamo-nos se a ideia estará clara, se determinado substantivo não será complicado demais, imaginando um público potencial de crianças austeras na sua exigência, prontas a castigar justamente o escriba com os seus desdém e desinteresse.
no caso concreto, serafim – contador de histórias profissional e comediante, acertou na mouche. desde logo, pelo ângulo: um menino sonha acordado desde o parapeito da janela no seu quarto. e, por viver numa cidade feia, imagina-a diferente, como desejaria que fosse. num esforço autoral que se percebe gémeo, as ilustrações a par e passo de francisco dão-nos a dimensão e a beleza perfeitas para o sonho do protagonista. a prosa, que é poética sem alguma vez resvalar para o piegas, brinca com as palavras e cria neologismos à mia couto – como ‘desimaginado’ – e é um conto de regresso à pureza, à inocência, ao tempo em que a casa era verdadeiramente um lar, o mundo dentro do qual problema algum violava as fronteiras. uma passagem:
«acho que as casas também fazem parte do corpo das pessoas. uma parte que se entranha em nós e nos ampara, como um porto o faz, quando os homens do mar regressam às mulheres da terra».
não se esperaria isto de um comediante, e esse é outro ponto a favor desta pequenina obra-tesouro. destrói o rótulo, o preconceito, e faz-me recordar a própria casa do autor, aconchegante e mimada, em beja, onde passei uma noite no pátio entre amigos a devorar tangerinas directamente da árvore – pensando sem querer no tempo longínquo em que pertenci à doce casa açoriana.
falei em pureza e inocência, e regresso aos conceitos para defendê-los de qualquer ameaça velada de cliché. é que o menino protagonista, o sonhador ao longe, fá-lo desde o parapeito da janela. e o que é uma janela se não o ecrã original? onde a papinha não vem toda feita, como na tv ou no pc, e o telecomando que nos guia é mental, cada canal disponível é um neurónio dedicado à imaginação.
comprem e levem para casa esta peça de amor e um quarto de hora de prazer e tempo ganhos, nem uma palavrinha a mais nem a menos: servirá às crianças tão bem como aos adultos adiados.
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