Confraria do Anho Assado com arroz de forno

Marcado pela geografia, Marco de Canaveses abre-se ao mundo na destemida vontade de que nunca as dificuldades sejam impedimento de concretização. Abraçado pelas serras da Aboboreira e das Montedeiras e ladeado pelos Rios Douro e Tâmega, Marco de Canaveses apresenta um relevo acidentado e um clima de extremos. Quer o acentuado calor de verão, quer…

Sendo um concelho marcado pelo dinamismo económico e pela ambição de desenvolvimento sustentável, Marco de Canaveses conta com o trabalho da Confraria do Anho Assado com Arroz de Forno, desde 2006, na defesa, preservação e valorização das tradições gastronómicas locais. Conscientes da importância da gastronomia enquanto elemento económico e cultural, os confrades têm desenvolvido um marcante trabalho pois, para além da valorização desta receita de festa associada aos momentos importantes da vida das famílias e da comunidade, souberam preservar muitas das receitas que caracterizam as tradições gastronómicas marcoenses.

De facto, entre as muitas receitas angariadas por esta Confraria encontramos verdadeiras pérolas da gastronomia local que mostram como o povo, ora pelo que acrescentou, ora pelo que reduziu, criou um conjunto de sabores que se identificam com a história local. Um dos aperitivos do importante Anho Assado com Arroz de Forno, receita tão valorizada já distinguida pelo município e pela Confraria com a instituição de uma rota, temos o Verde ou o Bazulaque. Servido como aperitivo, sobretudo por ocasião dos casamentos, este é um prato forte onde os sabores depressa se entranham no palato. Com substância, o Verde resulta de uma mistura de várias carnes como vaca, porco, frango que, após a cozedura, são depois estrugidas com o tempero de um chouriço do fumeiro local. A esta mistura é adicionado pão e sangue de porco ou de anho que foi previamente cozido. Pela riqueza de ingredientes, este seria uma receita apenas digna de grandes ocasiões, pois os tempos difíceis de outrora não permitiam uma alimentação rica em carnes, estas ficavam reservadas para momentos de festa.

‘Ir à Sarrabulhada’ significava que se ia à matança do porco de um qualquer familiar ou vizinho, pois sabia-se que à sobremesa iria haver sarrabulho. Prato que adquire versões muito diferentes na mesa portuguesa, aqui tem um sabor doce pois à calda onde foi fervido o osso é adicionado o pão de trigo recesso, o açúcar, o vinho verde tinto (vinhão), a banha e a canela. Surpreendente pela mistura de sabores, decerto, que em tempo frio, momento quando decorria habitualmente a matança do porco, iria aquecer o estômago e o corpo dos participantes em tão esforçada tarefa. A inventariação desta importante receita local pela Confraria de Marco de Canaveses deu destaque, realçou a importância da mesma e, por isso, sazonalmente, está disponível nas ementas dos restaurantes locais.

No inventário feito por esta Confraria, falamos de dois pratos para mostrar como a dieta local se adequou às exigências do trabalho árduo, quer agrícola, quer na extração e transformação do granito. Referimos, primeiro, as sopas de burro cansado que incluem como ingredientes a broa de milho, o vinho verde tinto e o açúcar amarelo. Segundo, realçamos as papas de farinha de milho com carne feitas com o melhor que a terra dava: feijão, couve-galega, carne de porco, toucinho, farinha de milho. Pela qualidade nutricional, este prato era muitas vezes ‘a refeição’, pois dava força a quem dela precisava. Percebemos que ambas as receitas traduzem, na sua essência, ingredientes simples que, outrora, eram os disponíveis da prática de uma agricultura de subsistência marcada pelo milho, pela importância do porco e pelo vinho verde, tão característico daquelas paisagens.

Também os doces mostram a criatividade do povo deste concelho que soube, dentro das dificuldades, criar o excecional. As Fatias do Freixo são disso exemplo. Muito apreciadas, estas ‘fatias’ descrevem-se como uma massa de pão-de-ló que no cimo se apresenta cremosa e de textura mole. Sabe-se que os ingredientes são os habituais em doçaria, no entanto, é o saber-fazer guardado sob a forma de receita familiar da Casa de Lenteirõeis que transforma a mistura adequada de ovos, açúcar, farinha e água num doce que o Rei D. João VI não dispensava nos manjares reais.

A juntar a esta doçaria requintada e rica digna de mesas reais há que falar de uma sobremesa que resultou da aspiração de fazer o muito com o pouco, a sopa seca, habitual nas mesas de festa das famílias remediadas. À falta de ovos e de muito açúcar capaz de fazer doces sumptuosos, os menos abonados faziam com pão de trigo já velho, água adocicada com vinho doce, limão, açúcar, um mimo que alegrava a mesa em dias de celebração. Em camadas, o pão era disposto sempre amolecido com a água adocicada sendo depois cozido em forno de lenha. Dizem os antigos que comido ainda morno fazia os convivas corarem de satisfação.

Numa terra onde o anho assado com arroz de forno, ainda hoje, determina a ementa dos dias de festa, é bem de ver que a riqueza gastronómica é uma verdade. O anho, um borrego de tenra idade com 10 a 12 kg de peso, é cozinhado com tal mestria que as bocados finos junto à costela são fios de carne que se desafazem na boca pela macieza da mesma. A pele estaladiça aguça o apetite e leva-nos a repetir sempre acompanhado do arroz de forno. O resto da receita é um saber-fazer que as gentes de Marco de Canaveses souberam apurar ao longo dos séculos. Prato de casas ricas, é hoje o protagonista das ementas da restauração e uma grande atração àquele concelho. 

Mostrando como o rico e o pobre se encontram à mesa, como as dificuldades decorrentes da geografia fazem a gastronomia, como as exigências do trabalho marcam as receitas e os ingredientes, esta é uma amostra de um trabalho soberbo, com muita polpa e sumo, desenvolvido pela Confraria do Anho Assado com Arroz de Forno. Um trabalho que resultou da persistência dos confrades junto dos mais velhos que, assim, transmitiram a riqueza de tradições quase esquecidas. Para esta Confraria a mudança verificada pela modernização rodoviária, pela disponibilidade e abundância dos ingredientes, não deve fazer esquecer o que caracterizou a alimentação das gentes do Marco. Este trabalho olhado com respeito pelos restaurantes locais, é agora usado como base para reabilitação de ementas gastronómicas que descrevam a herança cultural de Marco de Canaveses. Uma aposta na preservação cultural, mas também na atração turística com manifestas consequências na dinamização económica. Uma vitória, por isso, para a Confraria do Anho Assado com Arroz de Forno e para a gastronomia portuguesa.

* Presidente das Confrarias Gastronómicas Portuguesa