O papel dos jornais

O dobrar do ano, o gesto simbólico de riscar a última folha do calendário, convida ao futuro e inaugura um ciclo de promessas que alimentam o imaginário. O passado morre de ‘velho’ e o amanhã há-de ser melhor. 

Nesta transição, os media falam de tudo, menos de si próprios. Ler jornais é saber mais, foi um slogan que caiu em desuso. Como caíram as tiragens. A imprensa é, indubitavelmente, a que mais sofre, com recaídas alarmantes nos ‘cuidados intensivos’.

O tempo dos ardinas que calcorreavam a cidade a partir do Bairro Alto – o ‘bairro da tinta’ – extinguiu-se há muito. Os quiosques de rua substituíram os pregões, os ardinas sedentarizaram-se, os jornais fecharam as portas no Bairro Alto (com exceção de A Bola), e do antigo ‘bairro da tinta quase só restam as paredes grafitadas.

Um a um, os jornais apagaram as luzes. Os vespertinos extinguiram-se primeiro. Alguns históricos depois, como o O Século e o República, na ressaca revolucionária.

Em Lisboa e Porto houve títulos a afixarem escritos nas janelas. Mas ninguém quis comprar as casas devolutas. O mercado tinha outra praia.

Ficaram pelo caminho diários e semanários com muitas histórias por dentro, abandonados por famílias que se cansaram de serem mecenas ou por banqueiros que puxaram o tapete quando lhes conveio.

Pensou-se – erradamente – que não voltaria a acontecer. E que, sacrificadas algumas ‘velharias’, quem sobrevivesse estaria a salvo numa espécie de ‘paisagem protegida’. Um engano trágico como se verá.

O definhamento de alguns jornais, confirmado pelos gráficos implacáveis das auditorias da APCT (Associação Portuguesa de Controlo de Tiragens), adensa as sombras.

O Público, que nasceu amparado a um projeto de marca da Sonae, anunciou mais um programa de rescisões, que expira dentro de dias e emagrece o jornal. Uma das suas colunistas de referência, a jornalista Alexandra Lucas Coelho, assinou um texto pungente, misto de apelo e de requiem por um modelo de jornal. A sua proposta é «deixar de pensar o jornalismo escrito como um negócio e encará-lo como um bem comum (…)»… Uma bela utopia.

O Diário de Noticias, depois de reduzir drasticamente os efetivos em 2014 (juntamente com o JN, O Jogo e a TSF, peças do mesmo xadrez do grupo), não logrou inverter a tendência dos prejuízos e já consta, sem desmentido, que prepara a venda do edifício-sede (classificado como Imóvel de Interesse Público), com conclusão prevista para o primeiro semestre deste ano.

A confirmar-se, ficará descaracterizado, em breve, mais um edifício icónico da cidade, o que não deve tirar o sono ao edil João Medina, nem ao vereador Manuel Salgado, nem ao novel ministro da Cultura, João Soares. Antevê-se outro atentado contra o património cultural edificado, exilando o jornal algures.

Mesmo o Sol, que acolhe esta coluna, foi forçado a uma ‘dieta’ espartana, a par do diário i, pelas razões explicadas em editorial pelos seus responsáveis.

Conclusão pouco original: uma boa parte da imprensa sobrevive com a ‘respiração assistida’ e tem prognóstico reservado. Ressalvadas as (poucas) exceções, a saúde da imprensa exige redobradas cautelas.

«Quem matou os jornais?», interrogava-se Rogério Canhoto, um professor do ISCTE e da Católica perante o colapso de alguns, vítimas do «modelo de negócio tradicional da imprensa escrita».

O seu diagnóstico aponta a mudança de hábitos dos consumidores da informação e conclui pela urgência de agregar «um forte mix de competências digitais ao atual mix de competências jornalísticas», em função das novas plataformas de contacto (tablets, smartphones, etc.).

O lançamento do Observador, em suporte exclusivamente digital, ilustrará, talvez, esse mix. Trouxe uma frescura muito positiva, reveladora de profissionalismo e de coerência nos conteúdos. Preferiu a ação em lugar do ‘jornalismo sentado’. Não se rendeu à preguiça. Nem à arrogância dos iluminados, que escondem o chapéu na mão.

Convenhamos, no entanto, que a morte anunciada do ‘papel impresso’ tem sido manifestamente exagerada…

No Brasil, por exemplo, um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas, nota que a confiança na imprensa não foi perturbada pela crise politica, económica e social que afeta as instituições.

Escreve-se em O Estado de São Paulo, a propósito, que «a independência da imprensa diante do poder público é percebida pela população – e talvez aí esteja a razão para que a confiança na imprensa cresça enquanto a das instituições públicas diminui».

O estudo toca no ponto nevrálgico. A confiança dos leitores-consumidores não se conquista se os media forem um exercício de umbiguismo dos jornalistas ou de servilismo aos poderes do dia. A vassalagem tem preço fixo. A credibilidade nunca está em saldo. Nem passa de moda…