O exemplo raro de quem é solidário a competir

Tivemos mais um exemplo disso no Dakar, e pelas mãos de um português. Paulo “Speedy” Gonçalves ajudou um rival durante dez minutos na sétima etapa depois de este ter sofrido uma fratura no fémur

“O fair-play é uma treta”. As palavras vêm do suspeito do costume em termos de bombas em conferência de imprensa no futebol. Jorge Jesus orientava o Belenenses em 2007, e nas vésperas de receber o Benfica, quis deixar bem claro que a máxima (muitas vezes desrespeitada), não passa de um bluff para enganar o espetador. A bem da verdade, os casos à volta do mundo, como de Hulk no Zenit ou Balotelli em Itália – por insultos racistas dos adeptos – podem fazer aumentar a descrença no desporto. Mas há exemplos que contrariam e teimam em demonstrar que em competição há espaço para ser solidário (mesmo com tantas vozes a pedir o contrário). Como o caso de Paulo “Speddy Gonçalves, que perdeu ontem a liderança na classificação de motos do Dakar, e que no último sábado ajudou Mathias Walkner, durante dez minutos, depois de este ter fracturado o fémur.

“Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros. A nossa vida vale mais que qualquer vitória, sem ela não vencemos” alertou o português no seu Facebook. Um discurso humilde, raro, que foi posteriormente reconhecido pela organização da prova, que “descontou” os 10,53 minutos de atraso que Gonçalves acumulou. O piloto da Honda garantiu assim o terceiro lugar na etapa, ampliou a sua vantagem (perdida ontem) e ajudou a tornar real o fair-play.

Letra, não treta. E 2016 parece querer levar o conceito à letra, pelo menos nestas primeiras semanas do novo ano. Basta olhar para mais um exemplo, agora no ténis. O australiano Lleyton Hewit bateu o serviço – limpinho, limpinho, como se viu depois – e o juiz considerou o fora. Só que do outro lado, o americano Jack Sock fez o que ninguém estava à espera (basta olhar para o vídeo, as caras de espanto valem a pena): pediu o “olho de falcão”, tecnologia que garante se a bola bateu na linha de serviço ou não. E bateu, um ponto que ajudou Lewitt a garantir a Hopman Cup em Perth (vitória por 7-5, 6-4), na Austrália. Mas o verdadeiro vencedor esse, foi Sock. Ele, o desporto e todos nós.

Vamos recuar até 1997 para restaurar a fé no futebol e tentar contrariar JJ – desculpe a arrogância mister. Num episódio que o “The Independent” classificou como “bizarro” por nunca ter acontecido no futebol moderno. Num Liverpool-Arsenal, o jogador dos reds Robbie Fowler ficou isolado, cara-a-cara com o guarda-redes David Seaman. Fowler fingiu que Seaman o tinha rasteirado, e o árbitro apitou. Só que segundos depois, o atacante gritou “não não” bracejando com os dedos. O juiz não ouviu e o penálti foi marcado. A bola acabaria por entrar, mas só numa segunda tentativa, pois o número 9 bateu devagarinho, mas Jason Mc(H)Ateer resolveu marcar. A letra “H” está lá por acaso, mas acaba por fazer sentido não é? “E são esses segundos que determinam se és um bom tipo ou um mau rapaz”, disse Thomas Helmer, que viu um golo “fantasma” seu ser marcado em 1994 quando jogava na Bayern Leverkusen (o jogo seria repetido), e assistiu a outro semelhante em 2013 pela mesma equipa.

Não, nem sempre é treta. E o que se espera é que seja normal com cada vez mais “bons tipos”.

O “fantasma” de Kiessling

“Estou destruído”. Disse o Stefan Kiessling, jogador do Bayern Leverkusen, depois de ter marcado um golo “fantasma” ao Hofenheim em 2013. O jogo acabaria por não ser repetido.

Atletismo fair-play

Há dois anos Iván Fernández Anaya alertou (e empurrou-o até) Abel Mutai de que a linha do final da meta ainda não tinha sido ultrapassada pelo queniano. Acabaria por perder a corrida.

Ajudar o rival

O bielorrusso Stsiapan Papou fez mais do que fair-play nos Jogos Europeus de Baku de 2015. O seu adversário Amil Gasimov lesionou-se no final, e Papou transportou-o às costas até à enfermaria.

jose.capucho@ionline.pt