A campanha-regabofe

Só é livre quem tem condições materiais e psicológicas para escolher.

Houve tempos – não longínquos – em que se entendia que as mulheres não tinham capacidade para votar, porque supostamente só sabiam, e só deviam saber, de cozinha, costura e crianças.

É interessante verificar que, assim que a cozinha e a costura se tornaram indústrias rentáveis e passaram a ser acompanhadas do adjetivo ‘alta’, converteram-se em áreas quase exclusivamente dominadas por homens.

O princípio fundamental da democracia é a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Ora a campanha para as presidenciais tem sido um regabofe de desigualdade. A comunicação social leva ao colo o candidato mediático – aquele mesmo que teve tribuna televisiva contínua durante décadas. Melhor seria que assumisse frontalmente esse apoio.

Recordo que, no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, a Rádio Renascença assumiu a sua opção política (pelo ‘não’) – mas fez questão de, como manda a ética jornalística, conceder o mesmo tempo de informação aos dois lados. Não é isso que tem sucedido nos media nesta eleição; seria útil que alguém fizesse uma tese académica sobre a democraticidade desta campanha: basta recolher reportagens e entrevistas de jornais e televisões que a tese faz-se por si mesma, dado que a disparidade de tratamento é eloquente.

Acresce que aos outros nove candidatos só se pergunta o que pensam sobre o décimo – para depois se fazerem títulos com as respostas ditas ‘polémicas’, que reiteram a ênfase naquele candidato.

Ao décimo, pergunta-se-lhe apenas o que pensa – e assim veste a capa de sábio e bonzinho ecuménico.

O esquema é tão básico que só me espanta a facilidade com que os nove provocados caem nele: no lugar deles, eu diria «estou aqui para falar do meu currículo e do meu projeto». Claro que, sendo mulher, logo se murmuraria (como se tem murmurado): «Olha a vaidosa, a gabar-se do que fez».

A proliferação dos frente-a-frente televisivos entre candidatos cansa mais  do que elucida, e terá como principal resultado o crescimento da abstenção.

Seria muito mais esclarecedor – e democrático – que se organizassem dois ou três grandes debates entre todos. O confronto aberto entre todas as propostas garantiria uma atenção igualitária dos potenciais eleitores.

Os candidatos deveriam ter-se unido na exigência deste modelo (usado nas primárias americanas, por exemplo) no que se refere aos debates televisivos – que são determinantes, como ficou provado nos idos do embate presidencial Mário Soares/Freitas do Amaral.

Não vejo a Entidade Reguladora da Comunicação Social nem a Comissão Nacional de Eleições preocupadas com esta clamorosa discriminação.

Nem com o uso da imagem de crianças em campanhas eleitorais: vi um dos candidatos, em campanha, rodeado de crianças no Refúgio Aboim Ascensão, e outro com crianças e jovens refugiados. A proteção da imagem dos menores caduca diante da fúria eleitoral?

E não percebo por que um dos candidatos (sempre o mesmo) é tratado pelos jornalistas como «professor», enquanto uma outra, igualmente doutorada, é tratada simplesmente pelo nome.

Portugal é pomposo e ridículo quanto aos títulos; mas esse ridículo joga exclusivamente a favor de uma elite específica: nunca vi, por exemplo, o brilhante académico Francisco Louçã ser tratado nas televisões por professor.

Por uma questão de transparência, lembro que votarei em Maria de Belém, cuja candidatura apoiei desde a primeira hora.

Não me demorarei aqui a elaborar sobre o soez ataque de caráter de que esta candidata tem sido alvo, por ter trabalhado dentro e fora da Assembleia da República. Mas recordo que ninguém atacou António Costa nos vários anos em que acumulou o cargo de presidente da Câmara de Lisboa com o trabalho de comentador fixo e pago num canal televisivo privado (um canal de notícias, que naturalmente escrutina a Câmara).

Às mulheres exige-se uma pureza absoluta e abstrata que não se cobra a homem algum. Dois pesos e duas medidas: até quando?

inespedrosa.sol@gmail.com