O livro de Hitler já chegou às livrarias portuguesas

Mein Kampf (A Minha Luta) regressa às livrarias portuguesas 70 anos depois da queda do III Reich e do suicídio do seu autor, que preferiu «meter uma bala na cabeça a abandonar Berlim» perante o avanço das tropas soviéticas. Se a voz de Adolf Hitler não deixou de se fazer ouvir além-túmulo, o ano novo…

A editora que entre nós saltou sobre a oportunidade de lucrar com o best-seller maldito foi a E-Primatur, curiosamente um projeto que, surgido em maio passado, quer ser pioneiro assumindo como objetivo a criação de uma “comunidade de editores”, o que será alcançado aplicando o regime de crowdfunding à edição de livros.

Curiosamente, uma das primeiras escolhas da editora recaiu sobre Os Mutilados, de Hermann Ungar, obra que encabeçava a lista de livros considerados ‘degenerados’ e que, por isso, foram queimados pelos nazis.

A nova edição de A Minha Luta é a primeira que respeita o texto integral, retomando a tradução brasileira de Jaime de Carvalho, originalmente publicada pela Globo, e que, segundo a E-Primatur foi «revista e cotejada com o original». Além de corrigir algumas gralhas, o trabalho de revisão de Marcelino Amaral introduz cerca de 20 novas páginas em português. Com alguns trechos deixados em alemão, esta versão foi a primeira a aparecer em Portugal, há 40 anos. Em 1976 surgia a versão de Fernando Ribeiro de Mello, editor da Afrodite, e tudo leva a crer que, para lá do desejado efeito de provocação em pleno período revolucionário, fê-lo iludido com a perspetiva de lucro. Tramou-se. Dos 10 mil exemplares impressos, a grande maioria nunca terá deixado o armazém.

2000 páginas e 3700 notas

De resto, a nova edição portuguesa – que conta com um brevíssimo prefácio (três páginas) em que António Costa Pinto defende que os perigos da obra hoje são escassos e que esta se tornou «definitivamente e apenas um pedaço da História Mundial, sem capacidade de mobilização extremista» – surge em contraste com a monumental obra que sairá no próximo mês na Alemanha. Preparada pelo Instituto de História Contemporânea de Munique, trata-se de uma edição crítica em dois volumes, como a original, mas com 2000 páginas e 3700 notas de rodapé. Uma edição que chama a si a responsabilidade de «desconstruir e contextualizar os escritos de Hitler: Como nasceram as suas teses? Quais eram os seus objetivos? E sobretudo: O que podemos nós contrapor, com os nossos conhecimentos de hoje, às inumeráveis afirmações, mentiras e declarações de intenções de Hitler?», disse o instituto.

As palavras que Hitler, preso por traição após a tentativa falhada de golpe contra o governo da Baviera, começou por ditar ao seu leal secretário Rudolf Hess, em 1924, enquanto desdobrava em quilómetros o exíguo espaço da sua cela, renasceram para uma surpreendente segunda vida na Índia, não já como manifesto político mas como livro de auto-ajuda.

No país em que a cruz suástica surge por toda a parte como um símbolo associado à sorte e ao sucesso, Mein Kampf tornou-se um livro popular, especialmente entre os políticos com inclinações hindu-nacionalistas. «É considerado um livro de auto-ajuda muito significativo», como explicou à BBC Atrayee Sen, professor de Religião Contemporânea na Universidade de Manchester, notando ainda que, se «se afastar o elemento de anti-semitismo, é um livro sobre um pequeno homem encarcerado que sonhava conquistar o mundo e que estabeleceu um plano para o fazer».

Bestseller  na Turquia

Ao fim de 90 anos, a obra continua a dar que falar também noutros países. No Brasil, a última versão, lançada em 2005, motivou processos judiciais contra a editora Centauro, de São Paulo; nos Estados árabes é encontrado facilmente; e na Turquia foi classificado como «um clássico da literatura mundial antimarxista», alcançando o quarto lugar da lista dos mais vendidos em 2005. É possível encontrar exemplares até em livrarias de Israel, tanto em alemão quanto em hebraico, isto apesar da sua difusão ser proibida, o que deverá manter-se.

Ao longo dos anos o manifesto hitleriano continuou, portanto, a ser traduzido e publicado nas mais variadas línguas um pouco por todo o mundo, estando disponível na internet, sempre à revelia do Estado alemão da Baviera – a quem os direitos de autor do livro foram entregues no final da II Guerra. Com o apoio do governo federal, as autoridades da região onde se situava a última residência de Hitler antes de subir ao poder impediram a republicação de Mein Kampf, embora tanto a posse do livro como a venda de exemplares antigos fosse legal.

Na prisão de Landsberg, com a conivência dos guardas, Hitler gozava de um estatuto especial. Recebia visitas, manteve-se activo, tornou-se uma espécie de mártir, com os seus partidários a conseguirem elevar o seu caso a uma causa e a convencerem as autoridades a estender-lhe um perdão.

Hitler pretendia chamar ao seu livro ‘Quatro Anos e Meio de Luta contra Mentiras, Estupidez e Covardia’. Publicado em 1925, não vendeu mais que umas centenas de exemplares. O público esperava um livro com sensacionais revelações em primeira mão sobre os bastidores do putsch, mas o que surgiu nos escaparates foram dois calhamaços, mais de 700 páginas ao todo, com frases intermináveis, numa prosa tortuosa de um orgulhoso autodidacta. A partir de 1933 tornou-se um êxito, permitindo a Hitler viver apenas dos direitos de autor. Durante o III Reich circularam mais de 12 milhões de exemplares, muitos oferecidos como presentes de casamento, às vezes em edições de luxo.