Maria de Belém: a menina bem-comportada que foi muito pretendida

   

Há em Maria de Belém uma aura racional muito vincada, quase fria. É do estilo de combinar o lenço com os acessórios, sempre muito direita na postura e de cabelo inabalável. 

O sorriso é uma arma, dizem. E Maria de Belém usa-a. Negociadora por natureza, sabe conseguir o que quer sem nunca ser agressiva. Conseguirá conquistar Belém? O nome, pelo menos, já o tem e é por ele que os portugueses a conhecem há vinte anos, desde que em 1995 chegou a ministra da Saúde pela mão de António Guterres.

A influência das mulheres

Maria de Belém Roseira Martins Coelho Henriques de Pina, um nome longo que herda os dois últimos apelidos do marido – o engenheiro químico Manuel Pina, com quem é casada em segundas núpcias e do qual tem uma filha. Nasceu no Porto, a 28 de julho de 1949, no seio de uma família abastada do Norte com mais dois irmãos e duas irmãs. É a mais nova e por isso foi «muito mimada», segundo confessa.

As memórias mais vivas que guarda da infância são passadas na quinta da avó, em Vila Real. As mulheres da sua família haviam de a marcar para a vida. A mãe – que teve a educação das senhoras da época (tocar piano e falar francês) mas sempre defendeu a independência financeira das filhas; para, como elas hoje dizem, «podermos ser nós próprias». A avó – de uma família de produtores de vinho do Porto, que optou por viver sozinha em Trás-os-Montes, enquanto o marido ficou na cidade. E duas tias – que nunca casaram e trabalharam sempre: uma como farmacêutica e outra, sua madrinha, como educadora de infância, tendo feito um percurso de vida à revelia da família. «Na quinta da minha avó ainda não havia eletricidade. Confrontar-me com fogões a lenha para mim era uma coisa absolutamente extraordinária. Parece que durante uns dias não toquei em nada, com medo de me sujar», recorda.

Mas, depois de ‘estranhar’, ‘entranhou’ a vida no campo. Subia às árvores para colher fruta, passava os serões a ouvir contar histórias, a ler ou a aprender as constelações num céu escuro e estrelado, como não existia na cidade.

Marcou-a muito ter aprendido a ler antes de entrar para o Colégio de Santa Teresinha, onde fez a primária. Seguiu para o Liceu Rainha Santa Isabel, e a partir daí passou a devorar os clássicos portugueses – Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Alexandre Herculano – e interessou-se especialmente pela literatura francesa e russa. Aprendeu muito com os romances do pós-guerra. Mas não desprezava os policiais, deliciando-se com Simenon. Não guarda, contudo, grandes amizades dessa época. «Foi há tanto tempo…».

Uma forte ligação ao pai

Embora os tempos fossem então mais rígidos, o seu ambiente familiar era aberto e livre, e os pais davam-lhe margem para decidir pela sua cabeça. Nas brigas entre irmãos, só intervinham o indispensável, para acalmar os ânimos. O pai, funcionário público, com quem tinha uma ligação muito forte, era um homem discreto – o que não impediu que fosse denunciado por um colega como sendo comunista. Teve um primo exilado em Argel e outro em Paris, e uma das irmãs ia às manifestações de Humberto Delgado. Mas não era uma família de ativistas políticos, nem tão-pouco se falava de política em casa.

Em 1966, quando se muda para Coimbra aos 17 anos para estudar Direito, ficou a viver num lar de freiras com regras estritas. Tinha horas fixas de entrada e de saída. Nem mesmo um papel assinado pelo pai onde dizia que a filha podia ter mais liberdade de horários comoveu as ‘irmãs’.  As saudades de casa atormentavam-na. Não estava habituada a este ambiente muito conservador, mas aguentou estoicamente durante dois anos, como quem coloca o cumprimento do dever acima de tudo. «A minha rutura foi sair, não foi violar as regras estabelecidas nem tentar mudá-las», confessou em 1996, pouco depois de ascender a ministra, ao jornal Expresso. Os pais apoiaram a decisão e ela foi viver num apartamento partilhado com colegas de curso.

A vida em Coimbra

Em Coimbra vive num ambiente masculino. A maioria dos estudantes na época era formada por homens – e nunca se conseguiu ligar à cidade, numa altura de grande agitação política, de hippies e de enormes loucuras. «Chocou-me muito o provincianismo dos setores mais tradicionais, que não tinha nada a ver com as pessoas com quem a minha família se dava no Porto. Por outro lado, também nunca achei muita graça àquela agitação e àqueles exageros dos estudantes na época. Lembro-me do living theatre… Cenas de sexo explícito e coisas dessas… Nem pensar!», contava há tempos na Visão. 

Viveu o auge da crise académica de Coimbra, em 1969, com algum distanciamento. «Não foi uma ativista política, mas esteve do lado certo da História», recorda o socialista Alberto Martins, então presidente da Associação de Estudantes de Coimbra, que não guarda grande memória de Maria de Belém na altura, mas que viria a tornar-se anos mais tarde um dos seus melhores amigos no Parlamento. Já Maria de Belém recorda-se de uma bala a passar-lhe pelas costas numa manifestação estudantil. «Foi em 1969, ao pé da Praça da República, perto das instalações da Associação Académica e do Teatro Gil Vicente. E foi numa altura em que morreram dois colegas nossos. Lembro-me muito bem, foi uma altura muito marcante», recorda hoje.

Mas apesar de participar em algumas reuniões gerais de estudantes e nalgumas greves, nunca esteve na linha da frente dos protestos. Não gostava de ser uma ‘Maria vai com as outras’, considerando que «as multidões são manobradas». «Eu gosto de comandar a maneira como sou senhora de mim, das minhas atitudes e dos meus comportamentos», dizia em 2010 ao Jornal de Negócios.

O primeiro marido

Tendo estado indecisa entre Medicina e Direito durante a adolescência, só não seguiu a carreira médica porque aí «se exercia uma enorme pressão sobre as raparigas, sobretudo nas aulas de Anatomia», segundo contava ao mesmo jornal. Mas o sentido de justiça e o cumprimento das regras serviam-lhe que nem uma luva. Foi colega de curso de José Miguel Júdice e uma estudante igual a tantas outras: estudava e divertia-se nas latadas, cortejos e bailes, típicos da tradição académica de Coimbra, mas sempre inserida num grupo restrito de amigos. Nesse grupo incluía-se o seu primeiro marido, com quem casou aos 24 anos. Um assunto que prefere hoje não tirar da gaveta.

Depois de terminar o curso, em 1972, começa um estágio num escritório do Porto. Mas como não era remunerado e queria casar, aproveita a abertura no Estado a quadros qualificados e inicia em 1973 a carreira na Direcção-Geral da Previdência, como técnica jurista no então Ministério das Corporações e Previdência Social, ainda no tempo de Marcello Caetano. Daí saiu para assessora jurídica de Maria de Lourdes Pintasilgo, quando esta foi secretária de Estado, e depois para sua adjunta, quando Pintasilgo subiu a ministra.

Estada em Macau

A ex-primeira-ministra é, aliás, uma das pessoas da vida política portuguesa por quem Maria de Belém nutre maior admiração. Trabalhou também no gabinete do ex-secretário de Estado da Segurança Social Vítor Vasques, colaborou com Vasco Ribeiro Ferreira na Secretaria de Estado do Trabalho e passou pelo Secretariado Nacional de Reabilitação e pela Caixa Nacional de Pensões antes de chegar a chefe de gabinete do ministro da Saúde Maldonado Gonelha, em 1983. Grande parte da legislação em Saúde e Segurança Social passou-lhe pelas mãos durante estes anos.

Segue depois para Macau, em 1986, para onde já vai com a filha Maria Helena, nascida neste ano. Ocupa um lugar de administradora na Teledifusão de Macau (TDM), onde protagonizará uma das poucas polémicas do seu percurso.

Entra em conflito com o presidente do Conselho de Administração, António Ribeiro, e acaba por sair um ano depois, numa atitude drástica demais para os seus hábitos contidos.

Deixa um relatório onde levanta dúvidas sobre a gestão de António Ribeiro, que serão tornadas públicas meses mais tarde, levando à abertura de um inquérito.

O caso – que ficará conhecido como o ‘escândalo TDM-Emaudio’ – acaba na detenção de António Ribeiro e de outros membros da administração indiciados por peculato, e na exoneração do então diretor do Gabinete dos Assuntos de Justiça, Alberto Costa, que viria anos mais tarde a ser ministro.

Amizade com Melícias

De volta a Portugal, regressa ao convívio no grupo de amigos do marido, à data administrador do Montepio Geral. É através dele que conhece um dos seus mais antigos e próximos amigos, o padre Vítor Melícias, seu padrinho de casamento, que a convida para sua adjunta na Misericórdia de Lisboa – cargo para o qual será nomeada por Leonor Beleza, ministra da Saúde de Cavaco Silva, e onde ficará entre 1988 e 1992.

«É uma grande mulher, de pequena estatura. Delicada, graciosa no trato. Comparo-a a Maria Barroso. Conheciam-se e estimavam-se mutuamente, e sei que Maria Barroso tinha uma grande admiração por ela. São ambas inteligentes, empenhadas, guiam-se pelos valores. São duas grandes senhoras, mulheres de princípios», refere Vítor Melícias.

Curiosamente, Maria de Belém sucederá a Vítor Melícias em cargos como a presidência da Assembleia-Geral da União das Misericórdias e a União das Mutualidades, e será com ele co-fundadora de várias associações na área social como a APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a Liga dos Amigos do Hospital de São Francisco Xavier ou a Associação Portuguesa de Psicogerontologia.

Melícias sai de provedor da Santa Casa – e Maria de Belém recebe um convite para ser administradora-delegada do Centro Regional de Lisboa do Instituto Português de Oncologia, pelo então ministro da Saúde Arlindo de Carvalho. E a Misericórdia e o IPO serão as suas «duas grandes lições de vida», como confessará. Ainda hoje é membro de um rol de associações, institutos, fundações e outras tantas entidades de cariz solidário, entre as quais a Fundação do Gil, a Fundação Portuguesa do Pulmão, a Fundação Francis Obikwelu ou a Associação Acolher e Cuidar para a Cidadania. «É uma mulher de causas e, como Presidente, poderá influenciar essas causas», afirma o histórico socialista Vera Jardim, outro dos seus amigos mais próximos. Esta quantidade de compromissos faz com que tenha uma agenda muito preenchida. «’Oh Maria, você não pára!’, é o que nós costumamos dizer», graceja Jardim.  

Escolha pessoal de Guterres

Mas só em 1995, depois de uma já extensa carreira profissional, Maria de Belém entra na história política. O então primeiro-ministro António Guterres convida-a para ministra da Saúde. Guterres era sua visita de casa, através do marido, mas foi Luísa Melo – mulher de Guterres entretanto falecida – a peça fundamental para a escolha de Maria de Belém. E esta ainda hoje comparece à missa realizada em memória da amiga, celebrada todos os dias 29 de janeiro.

Militante do PS desde 1976, o seu percurso no partido era tão discreto que os jornais da altura deram-na como uma das independentes que integrariam o Governo. Até essa data apenas colaborava no Gabinete de Estudos do partido, na área da Saúde e Segurança Social, quando a solicitavam, tendo feito «sempre a carreira profissional à parte do PS». Por isso, admite, era «natural que não fosse conhecida».

Na pasta da Saúde, Maria de Belém põe em prática o seu perfil de diplomata, negociadora e conciliadora, que sabe levar a água ao seu moinho de sorriso nos lábios e sem ser hostil, mas sempre firme, de convicções vincadas, ouvindo várias opiniões mas não se prendendo a elas e reagindo algumas vezes com dureza e até de forma implacável quando se sente atingida.

À mesa do Conselho de Ministros revela maturidade, ouvindo mais do que fala. «Eu ficava muitas vezes sentado ao lado dela. É de uma educação e cortesia sublimes, sem primar por reações de impulso. Mesmo do ponto de vista físico é pequenina mas é de uma firmeza extrema com os dossiês e causas centrais», descreve o ex-ministro Jorge Coelho. «Sabe estar, sabe falar, criar pontes permanentes para que as pessoas se possam unir no fundamental. Ajudava a resolver muitos problemas», acrescenta. 

Leia aqui a 2ª parte da entrevista