U2 já não mora aqui ou ‘o primeiro disco é que era bom’

Imagine o leitor que deixaria de ir comer um daqueles bifes tradicionais de cervejarias decanas, sob o argumento de que: ‘os primeiros bifes é que eram bons’. Admitamos que há razões bem mais salientes para alguém se tornar vegan.

mas tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado (inverter aqui, por favor, as vogais). começou com um cliché disseminado no mundo da música e cujo paradigma pode considerar-se a banda u2, tida como a maior do planeta. os primeiros discos é que eram bons, cunhou-se a sentença. pois. nem que seja pela natural questão do amadurecimento, o mais provável seria achar que alguns dos melhores trabalhos surgem, seguramente, em fases mais avançadas da vida. todavia, para uma franja considerável de seres humanos, não. aliás, nem pensar.

esta gente define-se por fazer gala em não gostar do que a suposta maioria aprecia. dá-lhes o estatuto de orgulhosas ovelhas, decerto não negras, mas diferentes. entender aqui ‘diferente’ como sinónimo de ‘especial’. pouco importa que os artistas não tenham mudado em nada, a não ser no evidente acumular de experiência. para muitos, o simples cheiro a mainstream, a mera possibilidade de algo se tornar comercial, apetecível, esmagador é razão mais do que suficiente para proclamar ao mundo o seu desdém.

portugal não escapa, claro. por muito pequena que seja a paróquia, sempre tem os seus vícios de catedral. moldando-se na terra do showbiz, os eua, também por cá já vibram subgrupos de hipsters, malta que se auto-inflige uma peculiar zona de conforto – o submundo artístico; pessoas que deixaram de gostar de coisas antes sequer destas se deixarem engolir pelas massas. fernando ribeiro, líder dos moonspell, dava um excelente exemplo em entrevista publicada na última edição do blitz: «agora há bandas a editar coisas em cassete… para quê? estamos em 2012!».

ii – quem me dera tanta

auto-estima

auto-estima. como diz um amigo, seria um excelente nome para um stand automóvel. muitos opinadores insistem que, em portugal, sofremos de escassez da dita. permito-me discordar. temos é exemplares vários que a receberam desproporcionadamente. quiçá a maioria dos cidadãos tenha de menos, mas depois os outros compensam.

há dias ouvi na rádio um artista ser entrevistado sobre o seu percurso ou, como insistia em dizer, apesar da idade ainda tenra: «carreira». o rapaz em questão é o chamado fenómeno de nicho. faz umas coisas, tem um pequeno culto fiel, gente que gosta de tudo o que este, por exemplo, ‘posta’ na sua página de rede social (seja uma graça, seja a constatação – em pleno dia chuvoso – de que, lá fora, imagine-se, chove). mas está muito satisfeito consigo próprio, talvez amparado na mesada familiar. bastava anotar a quantidade de vezes em que repetiu a palavrita ‘eu’.

a dada altura, o radialista inquire sobre determinado programa televisivo. o interlocutor reage assim: «o que é isso?». o outro pergunta se ele não gostaria de vir a apresentar um programa daqueles. e o jovem cheio de si, argumenta não ter tempo para ver televisão, por isso é muito selectivo nas suas escolhas. pois é. tenho dado por ele, amiúde, a comentar online e com desdém espectáculos de artistas norte-americanos muito apreciados pela comunidade hipster. a auto-estima do indivíduo é tal que já se julga não só ao nível dos referidos, como mesmo suficientemente acima para lhes cuspir virtualmente.

acontece que o moço integrou o programa português que agora desconhece. e, para além do preocupante problema de memória que o afecta ainda tão novo, tem outra espada do destino, impiedosa, sobre si. mesmo neste cantinho bastas vezes mencionado como finisterra, poucos se apercebem de que existe. imagine-se então se fosse comprar caramelos a badajoz. felizmente, o artista tem um forte paliativo: um tal amor por si próprio que, claramente, dispensa o mundo. já vimos um homem grávido. agora – quem sabe? – virá o dia do homem grávido de si mesmo.

lfborgez@gmail.com