A favor da felicidade

Pouca gente tem coragem para ser feliz; há sempre muito mais interessados em morrer por uma qualquer causa do que em viver por ela.

«Como é amargo olhar para a felicidade através dos olhos de outro homem!»

William Shakespeare

 

A glória póstuma parece brilhar com uma intensidade muito maior do que a alegria existencial – mesmo, ou sobretudo, nas almas daqueles que não acreditam em reincarnações ou paraísos futuros.

A felicidade tem má imprensa; Marguerite Yourcenar dizia que ela é «um sub-produto», cumprindo a velha tradição intelectual de ajoelhar diante da tristeza como um microscópio topo-de-gama da natureza humana.

Perante um mundo ajoujado de injustiças, os felizes tendem a ser apressadamente classificados como ignaros ou, no mínimo, insensíveis; mas poder-se-á perguntar se a fixação na melancolia tem ajudado a melhorar o estado das coisas.

Em 1994 fui a Moçambique fazer uma reportagem sobre as crianças-soldado que, no fim da guerra civil, foram entregues à Unicef por ambas as partes do conflito.

Crianças e adolescentes sem família – muitos deles tinham sido aliás forçados a matar mães, pais ou irmãos –, enlouquecidos pelo horror e, frequentemente, estropiados pelos seus algozes, que lhes cortavam dedos e orelhas se os apanhavam a roubar um pedaço de comida. 

Recorria-se aos feiticeiros tribais, mais eficazes do que os psicólogos no tratamento da culpa naqueles jovens, para tentar que fossem reintegrados nas suas aldeias – e as populações mobilizavam-se para lhes dar educação.

No fim de uma aula no mato – com a terra como caderno e pauzinhos de árvores como lápis – , um professor descalço veio oferecer-nos um pé de laranjeira, dizendo, num sorriso radioso: «Para vos dar felicidade». Entendi naquele instante que a douta e talentosa Yourcenar não tinha razão: não, a felicidade não é um sub-produto; só quem a tem nas mãos (casa, comida, paz, livros, adulações) pode divertir-se a despedaçá-la, com uma ferocidade infantil.

Em todos os escritores mora uma criança que se sentiu mal-amada; creio que não há ser humano que não tenha passado por aquela varanda onde, num dos romances de Agustina, uma adolescente chora, e alguém diz: «Chora, menina, que não há felicidade neste mundo». Há a infelicidade essencial de nos sabermos transitórios neste mundo; quando conseguimos ser felizes, a guilhotina do tempo torna-se ainda mais assustadora, porque o medo de morrer aumenta.

O júbilo de amar e ser amado convive permanentemente com a sombra dessa faca suspensa: como viveremos se o nosso amado morrer primeiro? E como viverá ele se entretanto regressarmos ao pó de estrelas de que nascemos? A felicidade exige coragem persistente.

Escreveu Vergílio Ferreira, que faria agora 100 anos, nessa obra-prima sobre a determinação para a alegria que é o romance Em Nome da Terra: «A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós desse acontecer».

O professor descalço de Moçambique sabia isso. Aprendera o valor de estar vivo e de partilhar o seu conhecimento com garotos regressados do inferno terrestre. Aprendera a saborear o prazer de uma laranja. E não sofria da infelicidade sofisticada de que terá sofrido o misterioso Shakespeare (que completa em Abril 400 anos) e de que sofremos todos nós, os ungidos pela civilização do dinheiro, da fama e do espectáculo: a de invejarmos ou sermos invejados.

A competição é uma máquina de tortura: todo o sucesso será amaldiçoado pelos que não o alcançaram e desprezado pelos que o conseguiram.

Nada nos satisfaz; o relvado do vizinho afigura-se-nos sempre mais verde do que o nosso, e suspeitamos que alguém lhe forneceu uma relva especial que nos foi sonegada: raramente nos ocorre que talvez ele trate o seu relvado com mais cuidado do que nós o nosso.

O grande Tolstoi matou a sua magnífica Anna pela boa e simples razão de que ela se matou mesmo na vida real (tirou o caso de uma notícia de jornal) e de que não havia outra solução para uma mulher mentalmente emancipada na Rússia czarista.

Mas já é tempo de deixarmos de reverenciar a desgraça enquanto sinal exterior de inteligência: não há nada tão burguês, confortável e conveniente como o culto organizado da infelicidade. 

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