Portugal tem novo dicionário gastronómico

Ana Marques Pereira é licenciada em medicina, Maria da Graça Pericão em filologia românica. O facto de escreverem um dicionário gastronómico é a prova viva de que a comida une mesmo as pessoas, nem que seja à volta da mesa e, neste caso, à volta das palavras que lhes dão forma.

Se comer toda a gente sabe, arte mais audaz será chamar pelos nomes tudo aquilo que enche os pratos na mesa e as gavetas na cozinha, daí que ter na ponta da língua o que é uma pita, uma rodilha, um chupão, umas papas de moado ou um arrebenta-diabos não seja para todos. “É muito importante fixar por escrito os termos relativos a qualquer assunto”, lembra Maria da Graça, justificando assim a ligação entre a gastronomia e a terminologia, muito ligada à sua formação e que se revela como uma das suas paixões.

Entre receitas, livros de cozinha e dicionários, perderam a conta às palavras que reuniram em livro, mas as 500 páginas do livro “Do Comer e do Falar… Tudo Vai do Começar” (ed. Relógio D’Água) fazem antever uma leitura que só pode ser feita com um snack na mão.

Abramos então a caixa de Pandora da doçaria. Letra D de doce e que serve de prefixo a nada mais nada menos que 22 sobremesas. Se o “doce de ovos” não precisava de estar no dicionário para que todos o conheçam, já o “doce de buraco” não é de resposta imediata, momento-chave para nos socorrermos do livro: “pão doce com uma abertura no centro, semelhante ao pão de ló”. Já agora, é típico de Águeda, uma dica extra para brilhar em qualquer “Quem Quer Ser Milionário” gastronómico.

“Não é apenas um dicionário de culinária”, avisa Ana. E lembra que, apesar dos termos técnicos que poderão interessar apenas a quem faz da cozinha profissão, estas são páginas cheias de regionalismos. “A primeira tendência de quem pega no livro é folheá-lo até encontrar algo queo remeta à sua infância”, conta ao BI. Mal sabe quem folheia o livro que existem termos que vão muito além da infância de qualquer contemporâneo. “Os regionalismos são, em quase todos os casos, arcaísmos”, explica Maria da Graça. Ou seja, as palavras que consideramos serem apenas de uma região, são na verdade termos com milhares de anos, mas que algumas zonas do país têm a sorte de conseguir manter, tornando-as suas. “Trás-os-Montes e Alentejo são, sem dúvida, as duas regiões mais ricas”, garantem as autoras, destaque justificado pelo facto de serem zonas que se preservam longe das influências internacionais mas, principalmente, pelo gosto que têm em manter as tradições vivas.

Comida de união

Tudo vai do começar, diz o ditado e também o título do livro. Daí que, para as duas autoras, bastou uma troca de ideias para que as palavras começarem a sair em catadupa. Além de virem de áreas diferentes, Ana vive em Lisboa e Maria da Graça em Coimbra. “Nada que a internet não resolva”, garantem. Todos os dias enviavam o trabalho uma à outra e estabeleceram um sistema de códigos coloridos, com o texto a passar a preto apenas quando as duas concordavam com o resultado final. No total, foram mais de três anosde trabalho, intervalados com algumas idas à cozinha que isto da comida não é coisa para se ficar pelo papel.

Amante da comida internacional, Ana ainda se lembra de trocar os souvenirs por comida que não conseguia encontrar cá. “Quando ia a Londres era certo que a mala vinha cheia de chás, chutneys e especiarias que não existiam em Portugal”, conta, “mas ainda ontem fiz um arroz de pato, atenção”. Já Maria da Graça garante que ser mãe de quatro fez com que a culinária se tornasse uma necessidade, mas não esconde o gosto por cozinhar e, principalmente, inventar na cozinha. “A criatividade é fundamental”, salienta, daí que aposte em temperos “um bocadinho mais estranhos”. Já quando se fala em comida portuguesa, não há como resistir ao cozido, às açordas e ao peixe grelhado.

Continuar a conversa com as autoras ou ficar-se por folhear o livro já pede mais do que o snack que imaginávamos. É aqui que voltamos ao provérbio que lembra que, no que toca a comida, o difícil é parar. Mas como em qualquer refeição farta, chegou a hora de rapar o tacho, não sem antes dar resposta a quem ficou a pensar nas palavras enigmáticas do segundo parágrafo. Assim, pita é como as pessoas das Beiras chamam à galinha, rodilha é um pano da loiça no Minho, chupão é chaminé em algumas zonas do país e papas de moado não são mais do que um doce tradicional feito com sangue de porco, água, farinha, açúcar, banha de porco, sal cominhos, casca de limão, pinhões, passas, nozes e canela. Depois desta descrição, só mesmo um arrebenta-diabos para finalizar. Calma, é só um copo de vinho que se bebe no final da refeição.