Ana Padrão: ‘Apesar de ser um sofrimento, nunca deixaria de ser atriz’

    

Há pessoas que passam uma vida inteira a ser elogiadas, gente cujo talento é inegável, cujo percurso é singularmente positivo. Mas venha quem vier, nunca acreditarão nisso. Acham sempre que ficaram aquém, que não cumpriram, que não foram suficientemente boas. Ana Padrão é assim. Vive na angústia de uma profissão que ama. E que nunca trocaria por outra. Mas na angústia. Permanente.

Gostou de se ver neste “Jogo de Damas”, filme que se estreou esta quinta-feira e em que é uma das cinco protagonistas, ao lado de Rita Blanco, Maria João Luís, Ana Nave e Fátima Belo?

Normalmente odeio ver-me. Tenho graves problemas com ver-me, ouvir-me… Tive de aprender a lidar com isso ao longo da vida, já são uns 30 e alguma coisa anos de carreira. Mas é sempre difícil. Sempre. Acho que é sempre pouco, que é sempre menos do que deveria ser, fico sempre aquém. Sou muito crítica em relação ao meu trabalho. É uma angústia permanente. Diária. Mas neste filme demos tanto de nós, despimo-nos tanto… Foi um exercício de atriz extraordinário. Estava a precisar que me levassem a um limite, que me pusessem à prova. A Patrícia [Sequeira, realizadora] tem uma coisa extraordinária: ela adora atores. Quando se é realizador e não se gosta de atores, nunca se vai ser genial.

Há muitos realizadores que odeiam atores?

Há. Mas ainda temos um outro tipo, como é, por exemplo, o Lars von Trier. Ele é uma pessoa estranhíssima, um ser humano complicado, e acho que ele odeia e ama atores ao mesmo tempo. A um nível de psicose que é interessante. Gosto muito dele, mas já o conheci e realmente é um ser humano estranhíssimo. Mas a verdade é que os atores são as pessoas mais insuportáveis que existem. Como encenadora, odeio atores. Mas também os amo profundamente.

Como o Lars von Trier.

Também não quero chegar ao ponto que ele chega. Mas sim, acho que tem de se ter uma capacidade extraordinária para entender estes seres humanos que são os atores. São seres humanos tão desequilibrados que andam sempre sobre um fiozinho. Às vezes dá para o torto porque ninguém nos ensina a equilibrarmo-nos, é uma aprendizagem da vida.

O que tornou este filme tão interessante foi o facto de ter sido pensado a muitas cabeças, uma vez que as cinco atrizes são coautoras?

Exatamente. O mais interessante é que este foi um processo conjunto. A Patrícia propôs-nos um jogo: recebemos todas um email com uma boneca a dizer “queres jogar?”. Todas aceitámos. A partir daí ela pediu-nos para trazermos uma personagem e foi-nos dando diretrizes. É raríssimo termos uma oportunidade destas, normalmente dão-nos uma personagem, com um perfil básico e ridículo. Aqui não. Tivemos um primeiro encontro em que ela nos deu um booklet que tinha as diretrizes das relações entre nós: éramos amigas de adolescência que se juntavam para jantar às quintas-feiras e aquele ia ser o último jantar, e nesse jantar ia-se contar tudo o que não se contou antes. Entre várias conversas decidiu-se que não seria um jantar mas antes uma noite, após a morte de uma outra amiga. Foi tudo muito ingénuo e simples, sem sabermos para onde íamos. Acho que nunca tive consciência da dimensão daquilo, para mim foi sempre um exercício muito interessante. E foi muito difícil juntar-nos a todas, mas estivemos sempre, nenhuma faltou. Porque todas respeitamos muito a Patrícia.

Com quem têm todas trabalhado em televisão, já que ela é essencialmente realizadora de séries e novelas.

Sim. Mas ela é, de longe, das pessoas com mais talento no nosso país. Não podíamos recusar o convite. Nos tempos que correm, termos a oportunidade de fazer algo assim tão criativo é uma oportunidade única. Todas temos uma carreira, temos a mesma idade, todas sobrevivemos a esta profissão e ainda cá andamos. Aqui pudemos, de alguma forma, brincar com tudo isso e com o facto de tudo isso ser tão difícil.

Num filme como este, que teve o processo criativo que teve, a fronteira entre a verdade e a ficção é mais ténue?

A minha irmã foi ver o filme e disse que havia uma maturidade neste trabalho que ainda não tinha visto noutros. E eu disse-lhe que sim, porque o processo de atriz foi diferente. Agora, o que é verdade ou não… Construí uma personagem baseada numa pessoa que existe, mas não vou dizer quem é porque é conhecida… Mas sim, acho que neste filme pusemos todas mais verdade.

Durante a criação deste filme sentiu-se em confronto com a amizade, mas também com a idade e a morte?

Sim. E isso é doloroso. Mas chegamos a uma idade em que começamos a lidar com isso. Este ano tive imensas mortes na minha vida, ainda agora o [José] Boavida, antes o Nuno Melo, pessoas importantes para mim. O Nuno foi particularmente doloroso porque eu ia trabalhar com ele, no dia a seguir a ele entrar no hospital íamos filmar uma instalação sobre o Dalí. Aquele papel era para ele. Mas temos de lidar com isso. Só que nunca se aprende como. Mesmo assim, não tenho muito medo da minha morte.

Este filme, sendo realizado por uma mulher da televisão, está cheio dos silêncios do cinema. Teve receio que assim não fosse?

Não. Sempre disse à Patrícia que, no cinema, o silêncio é mais importante do que o texto. E a minha personagem neste filme é mesmo do silêncio. Ela viveu um segredo durante anos. Esta mulher não tem problemas com a sexualidade, não tem género, não é nem bi nem heterossexual, mas teve uma paixão que nunca conseguiu assumir. Nunca tinha trabalhado uma personagem assim.

É uma personagem muito diferente da que está a preparar agora?

Sim. Agora vou fazer o “Cabaret Maxime”, com o Bruno de Almeida. Já filmámos antes juntos. E vou filmar outra vez com o Michael [Imperioli], o que vai ser muito bom porque nos damos bem. É uma história muito louca, muito bas-fond, com imensos chicotes. A minha personagem é completamente bipolar.

Recentemente encenou a peça imersiva “E Foram Felizes Para Sempre”, que esteve em cena durante uma longa temporada no Júlio de Matos, em Lisboa. Os agentes culturais têm de encontrar outras formas e locais para fazer teatro?

Sim, mas este formato do teatro imersivo já existe, apesar de não ser muito explorado em Portugal. Foi uma proposta interessante que me fizeram e aceitei. Tenho feito algumas coisas na encenação, sempre off mainstream, e este projeto foi muito intenso e adorei fazê-lo. Como é que, sem palavras, só com movimento, contamos uma história? Tive de fazer um esquema de 100 cenas, 30 salas, dez personagens. Foi uma loucura, mas revelou-se um sucesso enorme, com grande investimento pessoal das pessoas envolvidas. E sem apoios.

A conversa da falta de apoios parece inevitável quando se fala de teatro em Portugal.

A coisa está ainda muito centrada numa maneira de estar e de se fazer teatro que é muito clássica. Temos de entrar nesse meio para conseguir alguma coisa. Nós não tivemos apoios, mas estivemos sete meses em cena. Foi um megassucesso. Tivemos pessoas a virem de Londres para ver o espetáculo. Fiquei superorgulhosa. Quem é que vem de Londres ver teatro em Portugal? Genial!

Esse sucesso deu-lhe vontade de ter mais experiências como encenadora?

Sim. Tenho muito pouco teatro no meu currículo. O que tenho, e foi com isso que construí esta peça, é uma visão de cinema. Tenho o ponto de vista da câmara e a peça foi toda construída como se o espetador fosse a câmara. Era como se a câmara estivesse em todo o lado, o que exige ter muito cuidado com o timing de todos os movimentos. As pessoas sentiram que estavam a entrar num filme. E tinham poder de escolha, acho que isso foi fundamental para o sucesso. As pessoas querem poder escolher.

O desinvestimento no ensino pela arte não prejudica a capacidade de escolha?

Muitíssimo. Tenho duas filhas e um longo processo de escolas privadas e públicas. Por exemplo, tenho uma filha, a mais nova, que pus numa escola pública onde ela teria uma forte componente de música. No ano passado, essa verba foi cortada. Ou seja, os pais que fizeram a mesma escolha que eu deixaram de ter apoio do governo. Uns míseros euros! É vergonhoso. O teatro, a dança, a música, a arte em geral, são fundamentais para a construção de uma pessoa. Um país que não oferece isso é pobre, miserável. É um país que não pensa. E construir seres não pensantes é a melhor maneira de os controlar.

As mudanças no governo e o regresso do Ministério da Cultura dão-lhe nova esperança?

Ainda assim, há esperança. Venho de uma geração muito pouco interventiva politicamente, que é a geração pós-25 de abril, que não tem grande consideração pelo que é ser político. Por isto, achei que estava a educar duas filhas, ambas adolescentes, sem consciência política, mas estou a descobrir que até têm muita consciência política e são pessoas que pensam. Às vezes dou por mim a ponderar como é que elas pensam assim tanto quando são da geração trash tv.

Controla o que elas veem na televisão?

Tentei. Estavam proibidas, por exemplo, de ver os “Morangos com Açúcar”. Mas depois percebi que isso é estúpido. Para que é que vou controlar? Não posso educar as minhas filhas isoladas, no meio da selva. Elas fazem parte deste mundo. Veem trash tv? Veem. Veem as Kardashian e afins. Às vezes até eu vejo com elas. A questão não é proibir, é falar. É preciso diálogo.

Tem saudades de dar aulas?

Foi giro, foi uma aprendizagem grande também para mim. Trabalhei muito tempo no CADIN (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil), com crianças com necessidades e dificuldades. Foi muito interessante para mim perceber como é que as artes podem ser tão terapêuticas. Tive muito prazer em dar aulas. Como tive agora em fazer coaching na telenovela “Mar Salgado”. Obriguei os jovens atores com quem trabalhei a fazer exercícios que depois ajudaram a que criassem uma amizade. E continuam todos amigos.

As artes podem ajudar a fazer amizades, mas também a destruí-las?

Ai, sim. Isto mata amizades. Não se tem uma vida normal. Eu, pelo menos, não consigo. Ter uma base emocional estável é importante, ter esse ninho é bom. Mas quando não se tem isso é complicado… Na profissão de atriz, manter esse ninho, quando não se tem horários, é muito difícil.

Até porque, além de não ter horários, está sempre a chegar a casa acompanhada por personagens?

Não. Esse método de levar a personagem para casa está associado ao Stanislavski, ao Actor’s Studio, ao Lee Strasberg. Trabalha-se com memórias e, quando se faz isso, é um exercício psicologicamente difícil. Abre-se a caixa de Pandora. Anda-se no tal fiozinho e facilmente se passa para o outro lado. Por isso, o Lee Strasberg sempre disse que só quando se está estruturado como pessoa se pode trabalhar o método. Só que, nos últimos anos, houve uma série de discípulos do Lee Strasberg que começaram a ensinar o método a jovens sem estrutura e houve vários suicídios, mas não sei se terá sido apenas por isto. Se pensarmos bem, a maior parte dos atores, em geral, são borderline. Se bem que hoje em dia estamos numa fase em que é tudo vegan e só comemos maçãs biológicas. Tudo mentira. Só que, hoje em dia, se és alcoólico, drogado, sais à noite ou se fazes apenas uma asneirinha, estás feito ao bife. Mais do que aquilo que somos como atores, interessa o que és como pessoa. Se não nos vendemos como pessoa, estamos muito limitadas.

É o seu caso.

Foi uma opção. Agora, sobreviver com esta opção não é fácil. Hoje em dia vive-se de likes. Sempre achei que tinha de ser vista pelo meu trabalho e não pelo que sou. Até porque não acho que seja uma pessoa muito interessante, sou uma pessoa comum. Acho que o meu trabalho é que tem de ser valorizado. Não consigo lidar com o contrário disto. E há atores internacionais, como a Meryl Streep ou o Robert de Niro, que conseguem manter privada a sua vida privada. Tudo bem que o nosso país é pequeno, mas a minha vida não interessa a ninguém. O que interessa é o meu trabalho. E quero que me respeitem. Claro que, se me promovesse mais, poderia ter mais trabalho. Mas até agora consegui sobreviver assim. E, além disto tudo, também tenho noção de que sou pouco popular.

Não é muito abordada na rua?

Mais ou menos. Acho que criei uma bolha. E faço sempre personagens que não motivam as pessoas a abraçarem-se a mim a tirar fotos.

Até imagino que só de pensar nessa hipótese fique assustada.

Não, bem pelo contrário. Fiz essa aprendizagem. Mas eu passo muito incógnita. As pessoas, muitas vezes, reconhecem-me é pela voz. É maravilhoso ainda conseguir manter o anonimato.

Mesmo nestes últimos anos em que fez três novelas seguidas na SIC?

Sim!

Depois da sua primeira experiência em televisão, a novela “Passerelle”, que fez logo após o Conservatório, disse que nunca mais faria televisão…

Quando saí do Conservatório era muito miúda e irreverente, e achava que o que cá se fazia em teatro e cinema era pouco interessante. Mas tinha de trabalhar, tinha contas para pagar – sempre tive, desde muito cedo. Ofereceram-me um papel em televisão e aceitei. Isto apesar de toda a gente me dizer que nunca mais ia fazer teatro nem cinema na vida, porque um ator de verdade não fazia televisão. Achei que era tudo gente estúpida porque num país deste tamanhinho, sem indústria nenhuma, não se pode aniquilar uma das coisas mais abrangentes do mercado. Agora, a verdade é que fui fazer e achei que, se aquilo era ser atriz, não era aquilo que eu queria. Fui fazer cinema. Estive oito anos só a fazer cinema.

O mercado não a castigou, tal como tinham vaticinado?

Não sei se foi o mercado, se fui eu… Mas a verdade é que fiz muito cinema. Eu sou do cinema, é o meu aquário. Só agora aprendi a fazer televisão, não sabia funcionar com as três câmaras, estava habituada a só ter uma. Durante anos baralhava-me com as câmaras. E também tive de aprender que, na televisão, não há espaço para os silêncios. Mas não é fácil fazer televisão. Agora já tenho prazer em fazer televisão, antes não tinha. Agora divirto-me imenso. E nisso a Patrícia [Sequeira] tem muita culpa, porque ela faz televisão como se fosse cinema.

A televisão fez de si melhor atriz?

A melhor escola para um ator é a escola da vida. Há atores muito cerebrais e esquemáticos, há outros que são intuição pura, viscerais. Eu não sou nem uma coisa nem outra, sou uma mistura disto tudo. Continuo a aprender. E nunca fico contente com nada. Representar é tão viciante para mim que, apesar de ser sofrimento puro, nunca seria capaz de deixar de ser atriz. Apesar de ser um sofrimento, nunca deixaria de ser atriz.

Depois dos oito anos em que esteve no cinema, regressou à televisão com a série “Ballet Rose”. O que a fez aceitar o convite?

Era uma série, não uma novela, e que série! Fiquei logo em pulgas para dar vida àquela mulher. Fascinam-me os papéis que testam os limites do ser humano. Além disto, nesta altura tinha decidido que não iria viver fora, queria estar em Portugal. E, portanto, fazia sentido fazer televisão.

Arrepende-se dessa decisão de não ter apostado numa carreira internacional?

Não sei… Quando fiz o “My Daughter’s Keeper”, do Heinrich Dahms, estive na África do Sul e fui para Los Angeles, e estava tudo feito para dar certo. Tinha um grande agente e tudo. Mas nesta altura conheci duas atrizes, uma russa e uma romena, e percebi, através delas, que a limitação da língua obrigar-me-ia a ter sempre papéis de estrangeira. Além disto, não me identifiquei com o star system nem com a urgência de ser famosa. Eu não tinha essa urgência. Nem tenho. Mas ainda fiz muitos projetos no estrangeiro, só que a minha base foi sempre Portugal.

Quem foram os realizadores que maisa marcaram?

Muitos. Com o Raúl Ruiz, por exemplo, fiz um filme que começava comigo enrolada em 60 metros de seda que mudava de cor. O cinema é isto. E o Fonseca e Costa, o Fernando Lopes… Eu era uma miúda ao pé deles. Acho que fui adotada por eles. Os realizadores dessa época tinham todos uma ninfazinha e eu senti-me esse objeto de adoração. E sobretudo fui adotada por um diretor de fotografia e um chefe-maquinista, que já desapareceram, mas que me ensinaram quase tudo o que sei sobre cinema. Tratavam-me como uma princesa. Hoje em dia, o cinema já perdeu esse encanto.

É filha de um militar, o que a obrigou a crescer sempre em movimento, sem raízes. Foi isso que fez com se sentisse sempre uma inadaptada?

A minha raiz é africana, passei a infância em Angola e continuo a sentir-me uma retornada sem nunca o ter sido. Mas ainda hoje é em África que me sinto bem. E esta inadaptação marcou-me como mulher e como atriz. Não sou daqui, não sou de lado nenhum. Não sei de onde é que sou. Mas isso é material de trabalho para esta profissão, que é a minha, mas que eu não escolhi.

Como assim?

Eu comecei a fazer teatro muito nova. E não percebi a importância daquilo. Mas sentia a necessidade básica de me expressar de uma forma artística. Senti que aquilo me libertava. E tive uma professora extraordinária, a Manuela Machado, que me deu aulas durante anos no Instituto de Odivelas, onde estudei. Ela foi fundamental, até porque aquele registo era estranho, era um regime salazarista mesmo depois do 25 de abril. As nossas regras eram de 1930, tínhamos higiene, bordados e puericultura. Sou uma menina muito prendada. E casadoira! [Risos] No meio disto, esta professora fazia exercícios de improvisação que só muito mais tarde percebi. Acho que foi ela que, sem consciência, me encaminhou para o Conservatório. Mas a verdade é que, em consciência, achava que mais cedo ou mais tarde ia estudar algo mais académico. Por isso, ainda fui para Antropologia.

O facto de, desde muito nova, ter vivido sozinha, para estudar, deu-lhe uma noção muito forte do que é a luta pela sobrevivência? Ou amargou-a?

As duas coisas. Foi difícil. Tinha 17 anos. Vivo sozinha comigo há muitos anos. E, às vezes, sinto-me completamente farta de mim.

Nessas alturas pede ajuda ou simplesmente chateia-se consigo?

Sei lá… Há pessoas que são sempre felizes. Admiro-as imenso. Há pessoas para quem basta ver o sol para estarem felizes. Eu tenho dias… Sou muito instável.