Mordomias e subvenções vitalícias

Resolvidas as presidenciais, com o vencedor há muito anunciado, a legião de comentadores de serviço entreteve-se, como lhe competia, a escrutinar o futuro do novo inquilino de Belém e do seu presumível relacionamento com o Governo e as corporações.

O que se segue até 9 de março, quando Marcelo Rebelo de Sousa for formalmente empossado, é fácil de adivinhar. Um turbilhão de palpites.

Não será o único. Há outro turbilhão em desenvolvimento no interior do PCP, subalternizado ao Bloco. E um tornado em formação no Largo do Rato, onde António Costa, por mais que queira, não consegue disfarçar outra derrota, com dois candidatos presidenciais – que apoiou salomonicamente – vencidos no terreno.

Com este enquadramento de ressaca eleitoral, poderá parecer algo exótico recuperar uma deliberação do Tribunal Constitucional que obriga o Estado a repor as chamadas ‘subvenções vitalícias’, acolhendo a iniciativa de um grupo de deputados – não identificados pelo acórdão – feita mais ou menos à sorrelfa.

A crónica das subvenções vitalícias esconde, todavia, uma outra realidade que ninguém deseja assumir – e que é o desajustamento das remunerações fixadas para cargos políticos. Vamos por partes.

Comecemos pelo Presidente da República. Faz sentido que o primeiro magistrado da nação tenha uma remuneração inferior à do governador do Banco de Portugal, do presidente da Caixa Geral de Depósitos ou do presidente da RTP?

A resposta é óbvia: não faz. Mas é o que acontece, mesmo após as alterações introduzidas aos salários dos gestores públicos em 2012 – que ficaram indexados ao do primeiro-ministro -, mas com exceções nos casos de algumas empresas, cuja atividade e o ambiente concorrencial o justifiquem, segundo a letra da lei.

Faz sentido que se passe outro tanto com o presidente da Assembleia da República ou com o primeiro-ministro? A resposta é novamente óbvia: não faz. Mas tem sido essa a prática.

Faz sentido que um deputado receba, em média, quase metade, por exemplo, do que o salário de um vogal da atual administração da RTP? É pelo menos questionável.

Ora, exercer os cargos de Presidente da República, de presidente da Assembleia da República ou de primeiro-ministro não pode merecer um estatuto remuneratório vários furos abaixo do do governador do BdP, do presidente da CGD ou do presidente da RTP… para ficarmos por aqui. Mas assim sucede.

Este estado de coisas favorece uma perversão também óbvia: há quem ser governante ou deputado na esperança de ser essa a rampa de lançamento para chegar, mais tarde, às boas remunerações do setor empresarial público. Ou, pior, para vir a ser convidado, depois, como gestor de uma empresa privada do setor que tutelou enquanto governante. Sobram os exemplos.

Há uma enorme hipocrisia à volta da remuneração de cargos políticos. Em contrapartida, inventaram-se compensações.

Ninguém se choca hoje com os contratos obscenos que os principais clubes portugueses celebram com futebolistas, treinadores e dirigentes de topo.

Em contrapartida, há medo de corrigir as remunerações dos agentes políticos, o que é essencial para atrair os melhores à causa pública, motivando-os, sem ser necessária a ‘cenoura’ das prebendas e sinecuras prometidas a posteriori.

A questão das subvenções vitalícias é uma delas – e o Tribunal Constitucional demonstra a sua má consciência ao considerar que a alteração promovida pelo Governo anterior lesou “injustificadamente as expectativas de quantos confiaram no Estado”.

A deliberação do TC acolhe a lengalenga do costume da “violação do princípio da proteção da confiança”, e lava as mãos enquanto encobre, com um véu pudico, as próprias mordomias de que são beneficiários os juízes.

Justiça seja feita a Paulo Portas que, no meio do silêncio geral, veio dizer, preto no branco: “Discordo da decisão do Tribunal Constitucional, discordo da existência de subvenções vitalícias em democracia, e discordo do regime especialíssimo de aposentação dos juízes do Tribunal Constitucional”.

Com esta frontalidade, foi o único.

A manter-se o atual status quo, ficaremos condenados a governos assentes em equilíbrios partidários e cumplicidades avulsas, e ao empobrecimento progressivo do Parlamento, refém de caciques locais e de compadrios, que assinam a folha de presenças e entram mudos e saem calados. Ou de arrivistas moldados em ressentimentos ou frustrações mal resolvidas.

Remunerar com dignidade os agentes políticos é uma urgência democrática. Recuperar ou manter privilégios vitalícios – incluindo o regime de aposentações dos juízes do Tribunal Constitucional -, é ofensivo de quem trabalha e desconta durante uma vida inteira para merecer a reforma.