Ainda foi professor de Geografia, como o pai, mas cedo decidiu mudar de vida. Sérgio Moro deixou de ser em 2014 um mero juiz de Curitiba para passar a atormentar diariamente o Palácio do Planalto. As suspeitas da participação de membros do partido de Dilma num megaesquema de lavagem de dinheiro adensam-se a cada dia da Operação Lava Jato. Um caso que começou há dois anos com uma rede que usava centros de lavagem de carros do Paraná para branquear capitais e que parece não ter fim à vista

Aplaudido na rua

Estava já a sair do supermercado Muffato quando, ao passar na linha de caixas, o altifalante anunciou o seu nome. Foi por pouco, mas apanharam-no. Seguiram-se minutos de aplausos. Sérgio Moro mal tirava os olhos do chão. Ainda não se habituou àquela imagem de herói, nem percebe o porquê de tudo aquilo. Dos convites para selfies nas ruas, das flores que recebe todos os dias ou das multidões à porta do seu trabalho. Na sua cabeça é apenas um juiz brasileiro de primeira instância. Qual a anormalidade de ter encurralado membros do partido de Dilma Rousseff por suspeitas de corrupção? É alguma coisa do outro mundo pôr na cadeia responsáveis das maiores empresas empreiteiras do país quando existem fortes suspeitas? Para ele não.

Para os brasileiros que já não acreditavam na justiça é. Moro não vê sequer razões para deixar de fazer o que os outros fazem, para deixar de ir às compras ao supermercado do bairro ou de andar no seu Fiat Idea que já tem alguns anos.

Desde que a Operação Lava Jato, o maior escândalo de lavagem de dinheiro da história do Brasil, teve início, a 17 de Março de 2014, o Brasil mudou, mas Sérgio Moro não. Sabe que provoca sensação por onde quer que passa. Fazem-lhe músicas – estão todas no YouTube – por ser o magistrado que comanda a investigação. Por nunca ter desistido ou cedido a pressões num país onde nem sempre a justiça é cega.

A Operação Lava Jato no início tinha a dimensão de todas as que já lhe passaram pelas mãos. Uma rede que usava postos de lavagem de carros no estado do Paraná para lavar dinheiro. Muito dinheiro: mais de 3 mil milhões de euros. O que o juiz das varas de Curitiba não sabia era que isso era apenas um pormenor de um caso que iria mergulhar o Brasil num dos maiores esquemas de branqueamento da sua história. Que a teia de interesses, de favores e de apropriação do dinheiro público viria a gelar todo o país, inclusivamente Brasília.

Hoje, o seu trabalho faz manchetes nos principais jornais, transforma-o num inimigo de empresários e políticos de topo e faz tremer o governo do Partido dos Trabalhadores. Mas Moro dispensa guarda-costas. A mulher já lhe confessou várias vezes o receio pela sua segurança e pela dos dois filhos. Rosângela é como o marido, não tem manias de grandeza. Há um ano, a advogada aceitou largar os processos durante alguns minutos para receber uma chamada do SOL – atendeu à primeira – e só não fez uma descrição mais completa de Moro para não o contrariar: “Ele é realmente discreto e eu tenho de respeitar essa sua reserva”.

Rosângela contou como tem sido difícil lidar com toda a projeção mediática. Nas ruas de Curitiba e nas do Brasil já há muito que não podem passear sozinhos. A cada passo, Sérgio Moro é parado por alguém que lhe quer agradecer a sua determinação. Todos os dias, a toda a hora, em cada esquina. O juiz tenta não ser desagradável com ninguém, contrariando a imagem que criou na imprensa, de homem austero e rígido. Com os jornalistas não fala, nem concede entrevistas. Rosângela já aprendeu a lição. Após confirmar alguns detalhes e falar da agitação da sua vida concluiu a conversa: “Me disse que não iria fazer mais perguntas…”

Quem o conhece, como ela, sabe que tem de ser fiel ao seu feitio, mas os que se cruzam no supermercado da esquina com o homem que mandou prender os grandes do país não resistem. Quando Rachel viu o superjuiz num dos corredores do Muffato, teve a sensação de que o conhecia de qualquer lado. Mas estava longe de o associar ao homem que todos os dias lhe entra casa dentro à hora dos noticiários.

“Estávamos no mesmo corredor e perguntei ao rapaz ao meu lado de onde eu o conhecia…” Mas não foi preciso esperar pela resposta para soltar um grito: “Ah, você é o juiz Sérgio Moro, da Lava Jato.” Era o início de mais uma saída que não passava despercebida (e aí Moro nem imaginava o que lhe ia acontecer quando chegasse a hora de pagar). Depois de ouvir tantos elogios da desconhecida, o juiz respondeu, sem jeito, com um 'obrigado' tímido e continuou.

Fã da Operação Mãos Limpas

Não gosta que lhe agradeçam. Acha que não faz mais do que a sua obrigação, mas tem a noção de que nem todos os seus colegas combatem as injustiças sociais. Moro não tem ascendência europeia direta, mas se há processo judicial que o faz vibrar é a operação italiana Mãos Limpas – o caso que deixou marcas profundas na política daquele país e que levou à detenção de empresários e políticos influentes. Em 2004, Moro escreveu um artigo de opinião em que sublinhava a importância dos “juízes de ataque”, os que respondem às “injustiças sociais”. Falava da necessidade de os magistrados agirem “em substituição de um poder político impotente”. Naquela altura não imaginava sequer o megaprocesso que viria a ter em mão dez anos mais tarde.

Usa hoje a história da justiça italiana para tentar mudar no Brasil o presente dos que o vêem como um herói. E tem noção de que desenvolveu, como aquela geração de juízes italianos da década de 90, uma postura “antigovernamental”. E não é de agora. O magistrado da 13.ª vara federal de Curitiba rejeitou há uns anos a possibilidade de se tornar desembargador. Não só por acreditar que ainda tinha muito para fazer na primeira instância, como por desconfiar que tal hipótese de ascensão poderia ser um engodo. À época presidia a um inquérito que poderia levar à barra do tribunal um grande político e sentiu que a sua subida poderia ter uma intenção pouco clara por parte desse parlamentar.

Prefere não comentar quando alguém compara a Lava Jato com o processo do Mensalão, o escândalo que fragilizou Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores. Até porque defende que dois processos tão complexos não podem ser postos lado a lado. E se há coisa que o tira do sério são as acusações daquele partido de que deixou fugir informações da Lava Jato para prejudicar Dilma nas últimas eleições. Logo ele, que tanto foge dos holofotes e do protagonismo.

Na magistratura brasileira, dos que simpatizam com ele aos que o veem como um rival, há consenso em relação a Moro ser o juiz certo para um caso desta magnitude. A sua reserva, determinação, tecnicidade e jogo de cintura têm sido essenciais para o êxito deste processo, que já pôs na cadeia dezenas de executivos de grandes empresas de construção pesada e de petróleo. Uma investigação que abalou e promete continuar a abalar nos próximos anos a companhia estatal Petrobras e o governo liderado por Dilma Rousseff. E que tem levado às ruas milhares e milhares de brasileiros a pedir o fim da corrupção.

Se Moro não tivesse desistido da Geografia, talvez ainda hoje ninguém soubesse que a Petrobras – em que Dilma Rousseff foi presidente do conselho de administração entre 2003 e 2010  celebrava contratos com valores sobrevalorizados com as empreiteiras. Nem que parte desse dinheiro pago a mais acabava desviado para partidos políticos. Os montantes públicos desviados podem ter mesmo atingido os 8 mil milhões de dólares.

Precursor da 'delação premiada'

O interesse pelo ensino da Geografia veio-lhe do pai, mas durou pouco. Dalton Áureo Moro era professor de Geografia da Universidade de Estadual de Maringá e Sérgio insistiu em seguir-lhe os passos. Mas algum tempo depois decidiu mudar de rumo e fez o mestrado e o doutoramento em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná. Tinha outro objectivo que não deixou escapar, o de tirar uma formação fora do Brasil, de conhecer outras realidades. Escolheu o Program of Instruction for Lawyers da Harvard Law School.

Tem 43 anos e gastou os últimos 12 a comandar casos de corrupção com algum mediatismo. Um desses casos foi o Banestado, que acabou com 97 condenações. Um dos responsáveis por essa rede de lavagem de dinheiro – que envolvia uma quantia de 28 mil milhões de dólares – foi um dos investigados na Lava Jato: Alberto Youssef.
Moro foi precursor no Brasil com a estratégia da delação premiada. Mais uma das técnicas que foi beber à Operação Mãos Limpas. Quem colabora e conta todo o esquema às autoridades merece ser premiado. Mas se falhar o acordo acaba-se o prémio. Youssef quebrou-o ao prometer, no âmbito da Banestado, que nunca mais cometeria um crime. E o juiz da 13.a vara não hesitou assim que soube do seu envolvimento noutro esquema. Decidiu de imediato condená-lo pelo incumprimento da “delação premiada”.

A maioria dos juízes brasileiros considera que Moro é organizado e sabe presidir a investigações com esta complexidade. Os seus cuidados jurídicos, dizem, podem ser atestados pelo número de habeas corpus que já foram negados por outras instâncias na Lava Jato. O seu carro, cheio de volumes e livros espalhados no banco de trás, põe a nu o seu interesse pela teoria. Lê muito e também já escreveu um livro sobre crimes económicos, assim que concluiu os seus estudos nos Estado Unidos da América.

O seu trabalho volta agora a tirar o sono à Presidente do Brasil e ao ex-Presidente Lula da Silva. A popularidade de Dilma continua em queda e a economia brasileira há muito que sente as consequências do megaescândalo de lavagem de dinheiro. Naquele dia, no ano passado, Moro saiu ao final da tarde do tribunal e foi ao supermercado do bairro de Juvevê comprar qualquer coisa para o jantar.

Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo