Tiago Pires. “É mais difícil ser pai de família do que do surf português”

   

A Fundação Calouste Gulbenkian tem um lago, nos jardins, cheio de patos e cisnes. Não há ondas nem grãos de areia. O tempo convida a um café, não tanto a pegar numa prancha. É aqui, onde o cheiro a cultura se sobrepõe ao da maresia, que encontramos o melhor surfista português de todos os tempos. Desculpe, Tiago Pires. Aliás, “Saca” – uma alcunha do pai que nunca explicou -, o único cá da terra a entrar para a elite do surf mundial. De braço ao peito e com algumas mazelas depois de ter sofrido um acidente na Ericeira há três semanas, é tempo de falar de um ponto final na carreira internacional a que dedicou grande parte da sua vida. Agora, aos 36 anos despe o fato de licra para vestir o de pai de um rebento que nasceu no verão – uma das razões para se “reformar”. Sim, entre aspas. É que mesmo que Tiago deixe de competir lá fora e se sente mais vezes numa esplanada, não vai largar a água salgada. Corre-lhe no sangue. E quanto a isso, não há ponto final que valha

Porquê aqui na Gulbenkian?

Moro aqui perto, mudei-me para Lisboa há dois anos e gosto de vir aqui aos jardins. Estou muito ligado à natureza, tento sempre procurar espaços mais limpos. O facto de me ter retirado não quer dizer que vá abrandar. Não vou ter obrigações, claro, mas não quero de todo perder a essência da minha pessoa, que é surfar e estar em contacto com o mar a fazer projetos engraçados.

Já tiveste uns dias para pensar nesta decisão de te retirares. O que simboliza este momento?

Uma viragem. Competi durante os últimos 15 anos a fundo, muito intensamente. Sou um competidor nato, desde pequeno que o faço. Há aqueles miúdos que nunca gostaram de vencer ou de perder. Eu sempre gostei. Chegou uma altura em que senti que devia parar um pouco. Não estava com o mesmo andamento para estar no circuito mundial e é isso que manda sempre, a nossa cabeça. Era o momento certo para abrandar o ritmo, mas continuar ligado a este mundo, ao que melhor sei fazer.

E o que queres fazer nos próximos tempos?

Tenho contratos com o meu patrocinador, a Quicksilver, até 2020, entre outras marcas que me apoiam bastante e gostam do meu trabalho. A grande novidade para 2016 é um projeto que comecei o ano passado, um documentário biográfico que conto estrear em outubro deste ano. Estamos a meio da produção. É muito especial. Sempre tive uma panca por documentários biográficos. Quando cheguei aos finais da minha carreira desportiva em termos de campeonatos, pensei que estava a chegar o momento certo. Perguntaram–me: “Não é cedo demais?” Não achei. A minha história é muito ímpar num desporto que é muito anglo-saxónico, liderado por australianos e americanos, porque começou há muito mais tempo lá. Esse domínio é visível e eu fui o primeiro português a intrometer-me no meio deles e a conseguir fazer coisas grandes, mesmo sendo um adolescente que cresceu em Lisboa, estudou até ao 12.o e só fazia surf aos fins de semana.

E qual foi o truque para te intrometeres entre eles?

[Risos] Não foi bem um truque. Algum talento e aptidão. E muito trabalho, muita dedicação. E acreditar. É difícil porque não há exemplos, mas talvez tenha sido a minha arma principal, a minha determinação para chegar a um objetivo que nunca foi perturbada por derrotas ou afins. Houve momentos difíceis, e é isso que vou retratar no meu filme. Mas o importante foi que entrei para a elite mundial, um grupo restrito de 44 pessoas que hoje em dia são 32.

O surf, entre as décadas de 80 e 90, estava muito ligado a drogas, sexo e rock’n’roll. Como é que nunca cedeste à tentação?

Ainda apanhei isso, sim, a geração anterior à minha faz parte desse estereótipo louco que gosta muito de festa, uma coisa menos profissional. Foi o meu irmão que me incentivou a vir para o surf e tive a sorte de começar a fazer surf na praia de São Lourenço, onde por acaso conseguimos criar um grupo de amigos, todos mais velhos. São todos muito saudáveis, nunca fizeram parte desse estereótipo. Estive muito perto de entrar em contacto com esse tipo de rebeldia, mas desde o início que sempre fui dado ao desporto e à sua parte saudável. Percebi desde cedo o que era bom e mau, o que era mais benéfico para mim.

A família teve um papel importante?

Os meus pais separaram-se quando eu era muito novo. O meu irmão também foi um exemplo de um surfista que tentou entrar na competição mas não foi muito bem-sucedido, por isso tive algumas dificuldades em convencer a minha mãe de que queria ir fazer surf ou fazer um campeonato. Queria que me desse dinheiro para comprar o material, mas ela começou desde cedo a pensar que eu podia ser uma réplica daquilo que foi o meu irmão, e claro que sempre vincou a minha obrigação de estudar. E foi algo com que tive de me comprometer com ela. E cumpri. Fiz a escola até ser possível. Mas chegas ali a uma faixa etária em que ou dás o salto ou não dás, e eu dei. Acabei a secundária e tornei-me profissional porque na altura já era pago, já podia viver com o dinheiro dos meus patrocínios. Tinha 16, 17 anos.

E agora, a tua mãe ficou mais descansada?

A minha mãe tornou-se uma das minhas maiores fãs e sempre me apoiou muito. E nos últimos anos, se calhar, viveu ainda mais intensamente que eu, por isso dá-lhe alguma tristeza. Mas a vida dá as suas voltas e ela tem um neto novo para ajudar a criar, e isso dá-lhe felicidade. Vamos encontrando felicidade noutros sítios.

Agora és tu com responsabilidades para com um filho. É mais difícil ser pai dele do que do surf português?

É muito mais difícil ser pai de família! Ser pai do surf português veio naturalmente e eu limitava-me a fazer o meu trabalho e a ser reconhecido por isso. Claro que também temos algumas obrigações de dar o bom exemplo. Mas agora é mais desafiante.

E se ele seguir o teu caminho?

Não sei, é um problema com o qual só me vou deparar daqui a uns anos, por isso prefiro guardar–me para essa altura. Hoje em dia, a máquina do surf está num patamar em que está tudo mais facilitado. Na altura, com 14 anos, eu ia sozinho de camioneta para a Ericeira, a minha mãe deixava de me ver ao fim de semana. Andávamos a caminhar no desconhecido. Agora temos professores, escolas, serviços que vão buscar a casa. Um acompanhamento total da vida de um jovem surfista.

A máquina do surf português parece estar a dar frutos. Como olhas para os teus sucessores?

Olhando para aquilo que me aconteceu em Portugal, ou somos heróis ou somos vilões. E há uma linha que está no meio – que é onde é preciso estar -, mas que é muito arriscada e que pode ir para um lado ou para o outro. Sinto que o surf cresceu de tal maneira, quer para a indústria quer para os próprios atletas, ao nível de apoio, que pode funcionar contra nós. Temos a imprensa atrás de nós, especialmente em certas alturas do ano em que o surf internacional passa por Portugal. Eles relaxam demais, sentem-se demasiado confortáveis e não vão à procura do desafio. Há muito por fazer em termos de desempenho técnico e dos alicerces de um atleta profissional. É preciso trabalhar muito. E sei que eles ainda não têm isso, mas têm um grande potencial para lá chegar. Não é só ficar em casa e fazer um bom campeonato em Peniche, isso só não chega. Isso é iludir as pessoas. Há que provar que somos fortes em todo o tipo de mares. Tanto que ninguém ainda o fez, tirando eu. Vão à procura dos vossos maiores desafios, tentem trabalhar nos vossos pontos fracos.

Sempre foste assim racional?

Tive a felicidade de ser muito bem guiado pelo José Seabra, o meu treinador. Começámos a trabalhar quando eu tinha 16 anos e ele tornou isto tudo possível. Foi o primeiro a acreditar em mim quando nem eu acreditava. Disse-me que devia acabar o 12.o ano nos EUA para estar perto dos americanos. Até me assustei. Ninguém em Portugal tinha este tipo de discurso. Essa ida acabou por não acontecer, só que comecei a trabalhar com ele e definimos objetivos, sempre com o foco de chegar ao WCT [campeonato mundial de surf], que era uma missão praticamente impossível. Sempre foi muito visionário e deu-me sempre os conselhos certos. Chamou-me à atenção quando era preciso. Nunca me deixou subir demais em momentos altos, nem ficar completamente de rastos em momentos menos bons. Acho que, com ele, consegui ser uma pessoa muito disciplinada, ter os objetivos claros, ser humilde. Não há um campeão do mundo que não se mate a trabalhar. As coisas não vêm por si só. É por isto que alerto para que não adormeçam pelo caminho.

E as lesões que tiveste, como é que se muda o chip mentalmente?

Tiveram o efeito contrário em mim. Quando estive magoado, com lesões graves, trabalhei mais do que nunca. Nunca gostei de estar lesionado, por isso as lesões serviram sempre para trabalhar mais e voltar mais forte. São momentos em que reagrupamos as coisas e fazemos pequenos ajustes psicológicos na nossa vida pessoal. São grandes momentos de reflexão que sempre soube aproveitar. Claro que houve momentos baixos, estive sete anos no Qualifying e passei perto, muito perto. Mais perto do que os miúdos estão hoje em dia. Houve anos em que a barraca abanou, como se diz. Nessa altura tive a felicidade de ter o Zé ao meu lado.

O que te passava pela cabeça?

Ficas preso aos teus erros. A arranjar maneira de os combater. Cheguei a um momento em que faltava alguma coisa na minha carreira. Estava com um bloqueio mental. Sempre que estava perto, começava a correr mal.

Como desbloqueaste?

O Zé jogou uma carta importantíssima, que já tinha sugerido antes, mas eu não aceitei bem, que foi trabalhar com um psicólogo. Não achei muita piada, só queria era fazer surf. Mas em 2005 fiquei a um lugar de me qualificar no ranking, o meu pai faleceu e ganhei o primeiro campeonato na Ericeira. O desgaste era muito grande, foi um ano de muita emoção. E nas últimas etapas do Hawai, quando supostamente já estava qualificado, não mantive os resultados e acabei por descer. Fui-me abaixo. Falei em não fazer o ano todo, e o Zé disse que devia conhecer o Pedro Almeida, que é um grande psicólogo do desporto. Estava tão dormente que disse: “Vou conhecê-lo.” E a partir do primeiro contacto, gostei imenso. Foi como se me dessem um balão de oxigénio. Consegui ganhar mais uma prova na Ericeira, pus em prática as ideias do Pedro e não acabei tão alto, mas consegui manter um certo nível. Em 2007 comecei a trabalhar com ele desde o início da época e cheguei a meio do ano qualificado. Comecei a competir sem pressão, sem nervos, e claro que o meu surf melhorou.

Dessa carreira já sem pressão e com um surf melhor, quais as conquistas mais importantes?

Em termos de vitórias, infelizmente, no WCT nunca ganhei um campeonato ou cheguei a uma final. No Qualifying, em campeonatos grandes, venci algumas provas. E as duas vencidas na Ericeira, em 2005 e 2006, foram momentos mágicos: a primeira porque ninguém estava à espera, logo em casa! E a segunda porque aconteceu novamente. As ondas estavam incríveis, um dia de surf espetacular, e o nível estava muito alto. Foram os momentos mais altos na minha carreira.

Melhor do que vencer o Kelly Slater em Bali, em 2008?

Qualquer vitória sobre o Kelly é um momento grande. Em Bali acabei por ganhar-lhe no terceiro round, logo no início, em ondas perfeitas. Ele tem mais experiência que nós todos juntos, e ser surpreendido por um rookie em ondas perfeitas é uma coisa muito rara. Foi uma sensação única para mim e para ele, porque não devia estar à espera.

Por cá tiveste sempre uma relação difícil com as etapas em Peniche. Foi a pressão de jogar em casa?

Sim, sentia a pressão. Peniche foi um campeonato difícil de digerir. Mas também dos momentos mais bonitos. Senti o apoio do público sempre, e força, e o orgulho português a vir ao de cima. Claro que foi com grande pena que nunca consegui tirar um resultado em Peniche. É quase algo que passa para a categoria do tabu. O principal erro foi ter sucumbido à pressão, ao nervosismo.

Sentiu-se mais nervoso em Peniche do que no resto do mundo?

Sim, sem dúvida. Estar a competir numa praia com 30 mil pessoas a gritar o nosso nome… poucos surfistas vivem uma sensação destas. Ainda mais quando são os únicos a representar o país. É preciso estar preparado e ter estofo para lidar com isso.

Falas muito das ondas perfeitas. Durante estes anos apanhaste alguma m-e-s-m-o perfeita?

Já surfei várias. Uma que nunca esperei encontrar foi na Namíbia, uma onda que tem três, quatro quilómetros de comprimento. É claro que não conseguimos fazer tanto, não temos força para tal, mas foi a mais comprida. É uma onda desenhada à mão [faz o desenho num papel]. Aquelas que desenhamos no caderno da escola quando somos crianças. Nunca esperei apanhá-la. A água era fria, gelada, mas tal perfeição é raro encontrar.

Eras capaz de te mudar para algum dos países que visitaste?

Gosto muito da Austrália, é um país muito voltado para o desporto, tem um estilo de vida saudável, vivem muito os dias e pouco a noite. As pessoas, às cinco da manhã, já estão a passear, a andar e a surfar, e o dia dura até às 18 ou 19 da tarde.

Mas a Ericeira é a Ericeira…

Portugal é Portugal! E a Ericeira… Lisboa… não vou conseguir sair daqui, já começo a perceber isso. Já falei várias vezes com a minha mulher a pensar em ir para outros países, e a Austrália é um país onde me sentiria bem. Mas Portugal reúne um conjunto de fatores muito importantes: estarmos seguros, as praias, a comida, tudo aquilo de que eu gosto.

Temos sempre aquele lugar onde gostamos de voltar. A Ericeira é o teu?

Foi o meu destino de férias desde que nasci. Temos sempre um enorme carinho por onde passámos os melhores momentos da nossa vida. Foi onde comecei a surfar. Foi o meu terreno, o meu campo de batalha durante todos estes anos. Onde me pude aperfeiçoar, recarregar energias, evoluir.

É um local quase sagrado?

Estou muito ligado à Ericeira. Acho que se conseguiu criar ali uma estrutura micro bastante coesa e funcional. Mesmo a nível de autarquia, tenho uma relação muito especial com o presidente da Câmara de Mafra, que não é mais um político. Queremos uma Ericeira mais amiga do ambiente, mais autossustentável, mais capaz de receber pessoas, que é o que Portugal tem de fazer. Não temos indústria, é o turismo que nos vai dar a maior fonte de receita.

Apesar desse amor por Portugal, fora do país já levas uma família de amigos?

Tenho um leque variado de amigos de culturas diferentes. Tenho dois ou três em França, com quem comecei a correr o circuito desde cedo, que são praticamente meus irmãos. Continuamos muito em contacto. Depois atletas como o Adriano de Sousa, o Jeremy Flores ou Mick Fanning, são atletas com quem irei manter uma comunicação próxima. E acho que vamos fazer coisas giras, como atletas, mas fora da competição, como descobrir ondas. Há tanta coisa por fazer e é bom ter amigos que gostam de partilhar isso.

Como encontras essas ondas?

Hoje em dia consegues ir ao Google Earth e identificar ondas no mundo inteiro. Acho que tenho uma veia exploradora dentro de mim e vou querer aproveitar isso. Conhecer ondas novas é algo mágico, uma espécie de mística em si.

O mar não sai mesmo da tua vida, está visto.

É inevitável. O surf está-me nas veias. Não é só sangue que me corre no corpo, é água salgada também. Tenho um mundo para descobrir.

E como te está no sangue, também vais competir por cá, na Liga Moche, que começa a 18 de Março.

Vou competir para ficar em forma. Se parar, tenho medo de me relaxar demais. A Liga Moche faz com que haja aquele barulhinho na cabeça que me desperta para continuar a trabalhar, a ir ao ginásio, continuar a viver o bichinho da competição.

Sentes-te um veterano?

Não, não sinto. Se tivesse condições para isso poderia fazer mais uns cinco, dez anos de carreira. As coisas mudaram um pouco de figura.

Mas vais ter muitas saudades de andar pelo mundo fora, ou não?

Vou ter saudades dos sítios, em si, por onde o circuito passou. É engraçado, quando estamos a fazer aquilo no dia-a-dia não damos o devido valor. Mas quando deixamos de ir, pensamos: “Se calhar, já não vou lá passar.” Começamos a reviver as memórias, e são sítios mágicos. É uma vida de sonho. Os nossos escritórios são destinos paradisíacos e únicos no nosso planeta.

As ondas gigantes da Nazaré são algo a considerar?

Não sei. Atualmente, o surf de ondas grandes está num nível tão alto que é preciso ter muita disponibilidade física e mental, ter um contexto familiar que esteja preparado para levar uma vida dessas. E a maioria dos surfistas que praticam a modalidade são os que nunca tiveram uma grande carreira competitiva. Não vejo que possa passar pelo meu futuro. Gostei de surfar ondas grandes, mas tenho o meu limite. Não faz parte da minha filosofia estar a medir os centímetros. Mas são grandes heróis, um pouco inconscientes até, já se perderam muitas vidas com ondas mais pequenas.

Mas já surfaste alguma vez na Nazaré?

Comecei a surfar lá com mota de água muito antes de todos os que lá estão hoje. Dou-lhes o meu mérito, espero que cheguem sãos e salvos a casa ao fim do dia.

Tens algum tipo de fé?

Não me considero uma pessoa religiosa. É confuso para mim: fui criado como cristão, mas hoje em dia não me revejo na religião católica. A minha religião é um pouco assente em tudo o que fui aprendendo nas minhas viagens, tirando pedaços bons de cada país, de cada cultura, e é aí que eu me revejo. Não tenho um Deus especial. Penso muitas vezes naquilo que é melhor. Tenho fé, sim, penso várias vezes nisso, mas não me identifico como ateu nem com nenhuma religião em especial. Ando meio perdido nesse mundo.

É agora que, em “casa”, vais revelar o significado de Saca?

É uma coisa meio pessoal. Foi dada pelo meu pai quando eu era bebé. As pessoas relacionam muito com a ideia de sacar resultados, mas não tem nada a ver.

Podia até ser um título para uma autobiografia…

Não sei… tinha de pensar bem no assunto. Provavelmente isso irá acontecer num futuro próximo. O título tem de ser uma palavra forte! Tinha que ter alguma coisa a ver com o suor. A minha carreira foi feita à base do suor.