Daniel de Matos: ‘O ritmo do Marcelo é complicado. Ele não se cansa’

Daniel de Matos é o médico oficial dos Presidentes da República há 30 anos. Aceitou ficar mais um mandato e diz que vai ter de se adaptar ao estilo do novo chefe de Estado.

Foi o médico oficial de Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva. Ao fim de 30 anos como médico em Belém aceitou sem hesitar ser o médico do novo Presidente ou pensou duas vezes?

As coisas com o professor Marcelo passam-se a uma velocidade meteórica. Eu vou ter que adaptar o meu registo à figura, o que é um grande desafio, porque esta proximidade – tratamo-nos por tu há 50 anos – em lugar de facilitar pode tornar as coisas mais difíceis, mas levaremos seguramente o barco a bom porto. 

Foram colegas no liceu.

Entrámos juntos para o liceu. Para uma turma muito célebre, porque era uma turma com características muito especiais com o Marcelo, o Mega Ferreira… O Marcelo é uma unidade em movimento perpétuo e o próprio acompanhamento, o que é que ele vai fazer e para onde é que ele vai, são coisas que eu vou saber muito em cima da hora. O que eu não queria ser era o tipo da segurança. Esse, coitado, deve estar à beira da loucura, mas o médico também vai comer alguma coisa de menos digerível. O ritmo dele é um ritmo complicado. Ele não se cansa. Ele tem energia, tem capacidade…

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Muito diferente de Cavaco Silva?

São duas pessoas completamente opostas. Isto faz todo o sentido na vida do Marcelo. É uma coisa que ele trabalhou para atingir. O Marcelo nasceu com a fralda carimbada. Acompanhava o pai, que era secretário de Estado da Educação,  naquelas voltinhas e começou a absorver aquilo muito cedo. Foi, ao longo da vida, preparando-se para esta tarefa e está completamente equipado. Ele aos 11 anos já dizia que queria ser primeiro-ministro. Não sei por quantos anos vou fazer este papel, mas vou fazê-lo o suficiente para ajudar o Marcelo, na parte que eu possa, a ter o mandato brilhante que eu antevejo que ele vai ter. 

Vai dar um bom Presidente?

Conheço bem as qualidades que ele tem e com toda a franqueza acho que, nesta altura do país, o Marcelo é seguramente a pessoa mais bem preparada para desempenhar estas funções. O que lhe conheço não é só esta entrada de leão com grande ânimo, que é muito importante para a nossa sociedade, mas é sobretudo pelo profundo conhecimento que ele tem das nossas gentes. É um homem com capacidades humanas para fazer consensos e, em relação à saúde, até agora tem sido um homem saudável, que é uma coisa também simpática.

Saudável, mas hipocondríaco…

Ele confessa-se hipocondríaco diplomado e eu acredito que seja, mas é daqueles hipocondríacos que resolvem as próprias questões que levantam. Ele sabe de medicina, é uma coisa curiosa. E não é nenhum aselha nisto, o que o torna mais perigoso. Mas tem o senso de resolver uma parte importante das suas moléstias, e quando não sabe pergunta. E aí ouve com atenção, mas é uma pessoa informada nesta área. Ele estuda aprofundadamente qualquer medicamento que eventualmente tome. Conhece indicações, as contraindicações, os grupos farmacológicos, mas é sensato. Ele resolve uma boa parte destas coisas do dia-a-dia e pergunta quando acha que não tem capacidade para resolver as coisas sozinho. 

Há diferença entre tratar um Presidente e outra pessoa qualquer? 

Não devia haver, porque na história da humanidade as vezes em que essa diferença foi patente deu tremendas asneiras e deu verdadeiros desastres na condução à assistência médica a figuras pública. O professor Jean Benard, que era um homem da Academia francesa, chegou a escrever que os chefes de Estado eram pior tratados que o operário do estaleiro das obras da esquina porque a entrada em cena de sucessivos especialistas e um certo temor reverencial acabavam por fazer perder o fio condutor da orientação médica. Há exemplos trágicos disso. O Tancredo Neves, que não chegou a ser empossado, foi o exemplo de um conjunto de disparates. Os médicos tentaram adiar uma operação que tinha de ser feita para ele poder tomar posse, depois fizeram a operação com algumas trinta ou quarenta pessoas no bloco operatório… Cometeram-se erros sucessivos. 

Não se pode deixar entrar a política no campo da saúde?

Nós sofremos muitas pressões. Se um Presidente adoece, a primeira coisa que diz é que amanhã tem que estar bom porque tem um encontro com A, B, C ou D. Isto começa pelos assessores, pelos colaboradores, a família. A pressão é enorme, mas os médicos não podem resvalar para uma atitude defensiva. Quando começam a entrar em cena várias personagens está tudo estragado, porque cada um diz a sua coisa. E depois quem é que manda? Qual é a orientação que se vai seguir? Dá sempre asneira. Outra vertente possível, que também aconteceu na história, é a ocultação do estado de saúde do Presidente. Aconteceu com o Mitterrand. O médico do Mitterrand fazia incursões no Eliseu às tantas da noite para o tratar ao cancro na próstata, que já tinha não sei quantos anos, e depois publicava os boletins a dizer que o Mitterrand estava fantástico. 

O grande mérito do médico é não ceder às pressões?

É um enorme desafio para o médico tentar manter o tratamento como se fosse outro doente qualquer. E quanto mais o médico for capaz de manter essa coerência melhores serão os resultados. No dia em que o médico começa a resvalar ou a confundir-se com a figura de cortesão, do gajo que faz parte da equipa e que quer cumprir as regras, porque o Presidente tem que ir nem que vá preso por arames, começamos a pisar terrenos que dão asneira e que são prejudiciais para o próprio. 

No seu caso, já teve de tomar decisões complexas. Lembro-me de o Presidente Jorge Sampaio ter adoecido quando tinha uma visita importante a Timor, na altura em que foi aprovado o referendo pela independência. Houve algumas pressões, mas a decisão foi  adiar a visita.

Foi uma decisão muito difícil. Eu perguntei à minha consciência se aquilo teria que ser mesmo assim, se não poderia haver uma certa flexibilidade para que ele, embora sem cumprir o programa, pudesse passar lá umas horas… Mas aí tiro o chapéu ao Presidente Sampaio porque as coisas que o médico diz são sagradas para ele. Fiquei muito impressionado com ele porque aquilo era uma coisa de um peso enorme. Chegaram a dizer-me, alguém do staff, que tinham vindo não sei quantos mil timorenses das montanhas. Eu disse: «Percebo, mas não tenho nada a ver com isso. Não posso pautar o meu desempenho por esse tipo de critérios, porque senão isto acaba mal». E acho que tomei a decisão certa. Sampaio recuperou e tudo ficou bem.