Vanessa. Para uma teoria sobre os burgessos

Esta semana a Vanessa usou uma palavra que não dizia há séculos. Burgesso.

– Acabei de chamar burgesso a um gajo.

– Burgesso?

– Sim, saiu-me burgesso.

– Mas estás arrependida?

– Não. Estou só a estranhar. Nunca me tinha acontecido.

A vida é acontecerem sempre coisas que nunca tinham acontecido.

– Mas isso tem alguma importância?, perguntei eu, que tinha mais do que fazer e dispensava discutir semiótica com a Vanessa.

– Não, não tem importância. Fiquei surpreendida, só. Acho que foi a primeira vez na vida que chamei burgesso a alguém. A um homem, burgesso.

– Mas foste injusta? Se foste injusta, pede desculpa.

– Não foi uma injustiça, foi uma estranheza. Como é que me lembrei de chamar “burgesso”? Podia ter dito malcriado, parece que é a mesma coisa.

– Mas esse gajo vale alguma coisa?, insisti eu.

– Não vale nada, é mesmo um burgesso, respondeu a Vanessa.

– Então esquece. Não penses nisso. Não percas tempo com burgessos.

E, de repente, ao pronunciar a palavra também estranhei. “Burgesso”. A palavra enchia a boca e tinha um sentido impossível de replicar com um sinónimo. Não a usava há séculos. Mas por que raio?

– Tens razão, Vanessa. Também estou a estranhar agora que pronunciei a palavra. Não dizia “burgesso” há anos. Talvez desde miúda.

E ficámos assim a olhar uma para a outra. Se não nos lembrávamos de ter chamado a alguém “burgesso” isso significava o quê? Que tínhamos sorte na vida?

A Vanessa achou que sim.

– Na verdade, conheci poucos burgessos. Quer dizer, conheci alguns patetas. Mas burgessos realmente burgessos acho que tive o bom senso de me afastar imediatamente.

– Vanessa, tu com bom senso? Não me faças rir. Tu nunca tiveste bom senso na vida!

– Fiz parvoíces, sim. Coisas parvas. Cretinices. Mas escapei aos “burgessos”. Na realidade, nunca tinha conhecido um homem realmente burgesso. A quem me apetecesse chamar burgesso. Que fosse total e absolutamente burgesso. Será da idade? A idade faz com que já não saibamos identificar os burgessos?

Então não era a idade que vinha trazer sabedoria, conhecimento de si próprio, patati, patata?

A Vanessa achava que todas as conversas da treta sobre as maravilhas da idade revelavam-se falsas.

– Vá lá, Vanessa, fartaste-te de conhecer totós. Não venhas agora fingir que não.

– Mas não entendes que um totó não é um burgesso? Um burgesso é uma coisa muito grave. Agora sei de onde me vem esta palavra. Vem do princípio dos tempos. Quando eu era miúda a minha mãe sempre me disse que era preciso manter a distância dos burgessos e que eu não podia ter amigos burgessos.

– Mas, Vanessa, se já arrumaste o assunto com o burgesso chamando-lhe burgesso, a coisa está resolvida. Não tem importância nenhuma!

– Claro que tem (a Vanessa insistia). Se eu passei a não conseguir identificar com antecipação um burgesso, o que é que se vai seguir? O que me espera? Vou conhecer quantos mais burgessos antes de perceber que são burgessos? Isto é a desgraça.

– Vanessa, não dramatizes! Tu conheceste broncos. E até andaste com um.

– Para já, um bronco pode ser bronco mas não ser um burgesso. Esse com quem eu andei até era um bronco doce. Um burgesso é inadmissível. O que posso fazer eu para reaprender a identificar burgessos? “Coaching” pessoal? Achas que o “coaching” funciona para isto?

– É possível, mas eu recomendaria Jane Austen. 15 dias de Austen e isso passa.