Carlos González Verburg. O homem que sequestrou Cruyff

Durante anos a imprensa alimentou-se de uma mentira e imprimiu sempre a lenda, como o disse Maxwell Scott no “Homem que Matou Liberty Valance”. Nos anos 70 vivíamos uma espécie de faroeste e essa era a altura em que se ouvia em repeat aquela frase: “This is the West, sir. When the legend becomes fact…print…

Ambas as histórias são tristes, mas não tão triste como a de terça-feira 24 de março quando o mundo soube da morte (devido a um cancro nos pulmões) de Johan Cruyff (1947-2016). Com a saída de cena de um dos quatro magníficos – nessa mesa histórica onde se sentam também Di Stéfano, Pelé e Maradona – é altura de vir à tona os episódios mais marcantes da vida deste holandês de corpo franzino, esse génio total que conseguiu dar luz a uma equipa menor, numa liga menor numa seleção menor, como o eram o Ajax, o campeonato holandês e a seleção da Holanda – na escuridão até chegar Hendrik Johannes “Johan” Cruijff com 17 anos, em 1964. Tudo mudaria. Em nove anos levou o Ajax a conquistar três Taças dos Campeões Europeus consecutivas – uma proeza só conseguida por Real Madrid e Bayern Munique. E levou a Holanda a uma final do Mundial, em 1974 – perderia esse jogo com a Alemanha, mas começava aí o mito. A isto, Johan juntou três Bolas de Ouro antes de rumar a Barcelona. Aqui, o revolucionário que ignorava a lógica do futebol iria experimentar os dois mundos: a beleza e a felicidade que o futebol pode dar aos privilegiados, mas também o pior lado dessa glória conquistada, que quase lhe custou a vida.

Foi a transferência do momento. Em 1973 renegou o Real para preferir o Barça a troco de 100 milhões de pesetas para os cofres do clube de Amesterdão. E trocou as voltas à história fatídica do Barcelona, enrolado na tristeza e na maldição dos postes como ficou conhecida a final perdida para o Benfica na Taça dos Campeões em 1961 (3-2). Cruyff despiu o clube catalão de complexos, matou o mito Franco (eterno ajudante de Madrid) e venceu a Liga espanhola na sua época de estreia, pondo fim a uma seca de 14 anos sem títulos; e fê-lo com estilo – aquele 0-5 em ao Real Madrid no Bernabéu foi o grito que os catalães calaram durante décadas. Até 1977, ano em que apareceu em cena Carlos González Verburg para abafar a voz que dava lugar ao grito.

Depois desse episódio com Verburg, a decadência de Cruyff foi abrupta. Desapareceu, foi para os EUA, depois voltou para o Levante (um clube menor em Espanha), regressou ao Ajax e terminou no Feyenoord. Antes desta queda, houve o Mundial da Argentina, em 1978, a que o holandês anunciou que faltaria, sem nunca o justificar e fazer crescer rumores. Deu lugar a um imaginado Cruyff, que se negava a jogar por razões políticas devido à ditadura militar argentina que Videla pretendia, com a propaganda do Campeonato do Mundo, passar uma mensagem democrática. Cruyff não jogaria num país onde se violavam os direitos humanos. Outra versão da sua ausência tinha a ver com uma discussão com a Federação holandesa devido aos patrocinadores.

Mas não era bem assim. Como disse Mark Twain, uma “mentira imperfeita é, regra geral, tão ineficaz como a verdade”. Escreveu-o no livro “Da decadência da arte de mentir”. E como soubemos num dia em 2008 quando Cruyff contou à Catalunya Radio verdadeiramente o que o levou a não viajar para a Argentina, as histórias que se contavam eram mentira. Por ocasião da publicação de um livro de Charly Rexach, antigo jogador e ex-companheiro do holandês no Barça, Cruyff falou da influência da família e o que se passou no fim do verão de 1977. E acabou com os rumores, 30 anos depois.

Em setembro de 1977, ele e a sua família sofreram uma tentativa de sequestro em Barcelona. Verburg, adepto do Real Madrid, tinha raiva de Cruyff, de quem dizia que era o melhor jogador do mundo e que por isso o seu clube não ganhava nada. Era um delinquente, de porte atlético e bem parecido, entrou em casa do holandês com uma pistola. Minutos antes, convencera a mulher de Cruyff a abrir a porta. Eram 21h30 e enganou Danny ao dizer que tinha um recado do antigo treinador do marido, Rinus Michels, que vivia no Hotel Princesa Sofia. Conta o “El País” que mal entrou em casa dos Cruyff, encostou a pistola à cabeça da estrela do Barcelona, atou-o a uma cadeira, amordaçou-o e tapou-lhe os olhos; amarrou também a mulher e deixou-a deitada no chão. Os três filhos estavam nos quartos. Como contaria anos depois à rádio e, depois, ao jornal francês “L’Équipe”, Danny conseguiu soltar-se e saiu a correr para avisar os vizinhos. O jornal “La Vanguardia” contaria no dia seguinte que tinha ficado com a arma do marinheiro galego, quando este se destraiu para prender melhor Cruyff. Verburg escapou para a rua através da garagem mas ficou rodeado pelos vizinhos – foi detido e internado. Na prisão, quatro presos deram-lhe uma surra e sobreviveu por pouco. Cá fora, Cruyff decidia não ir ao Mundial da Argentina, onde se esperava a consagração da Laranja Mecânica.

Depois do incidente, a polícia passou vários meses na casa do futebolista e este andava sempre com guarda-costas, inclusive nos dias de jogos. Os seus filhos tinham seguranças especiais nas escolas. “Queríamos parar um bocado e ser um pouco mais sensatos. Não podia jogar um Mundial depois daquilo – jogar um Mundial não é preciso apenas jogar bem, tem de se estar a 200%. E eu, naquele momento, não estava”.

A Argentina ganhou a final à Holanda, por 3-1. E Cruyff não a jogou. Venceu a propaganda de Videla, que podia ter sido em vão se um deliquente numa noite quente de verão não tivesse sequestrado Cruyff. Como sempre, o mundo precisou sempre mais de Cruyff do que ele do mundo.