E se fosse eu?

A campanha de sensibilização da Plataforma de Apoio aos Refugiados é extraordinariamente eficaz, porque aposta no fundamental princípio da empatia. 

Habituámo-nos a considerar o lugar do Outro como distante; os péssimos ofícios do relativismo cultural, com a sua conversa fiada snobe e cobarde sobre o respeito pelas ‘especificidades culturais’, contribuíram muito para o aumento da indiferença ao sofrimento alheio.

Em Portugal, há meninas sem direito a estudar e forçadas a casamentos combinados pela família, a coberto desse ‘respeitinho’ pelas ‘tradições culturais’, que se sobrepõe impunemente à própria lei – porque fazer cumprir a lei ‘eurocêntrica’ que nos rege é atentar contra outras culturas que resistem a essa lei.

Parece-me óbvio que os direitos humanos são bons para todos e que a sua aplicação deve ser universal; resultam da razão, do «penso, logo existo» cartesiano, descoberta da qual decorre que as capacidades humanas de auto-determinação e de livre-arbítrio têm de ser garantidas a todas as pessoas. Isto, que é de uma simplicidade arrasadora, tarda a ser posto em prática.

A própria Europa fecha os olhos às múltiplas formas de escravatura que se praticam no seu solo, em particular sobre as mulheres – desde a mutilação genital à interdição de estudar ou trabalhar e aos casamentos forçados. Em vez de contrariar firmemente as tentativas crescentes de limitação de direitos provocadas pelo terrorismo – o objetivo dos terroristas é exatamente o de intimidar, humilhar e submeter pelo terror –, pactua com ele.

A criação, na Alemanha, de carruagens de comboio só para mulheres é um sinal claro dessa cedência aos valores da desigualdade e da discriminação. Se um bando de neo-nazis decidir, uma destas noites, atacar negros ou judeus, os comboios alemães instituirão carruagens só para negros e só para judeus?

A Europa comporta-se cada vez mais como um clube privado que tem à porta o dístico: «reservado o direito de admissão». Em vez de exigir aos que pretendem viver nos seus países laicos, democráticos e liberais que subscrevam esses princípios básicos, põe-se a criar guetos; crescem os condomínios privados e securitários dos ricos, isolados dos bairros dos pobres e dos imigrantes, onde até existem cafés onde as mulheres não entram.

A burocracite irresponsável com que a União Europeia tem empurrado a resolução da tragédia dos refugiados é reveladora do ponto a que chegou a falta de empatia com o sofrimento humano mais básico e elementar.

Agora surge a proposta de criação de uma entidade federadora que agilize, com equidade, a resposta aos pedidos dos milhões de desesperados da guerra. Demasiado tarde e sobre um vergonhoso tapete de milhares de mortos, como sempre. Até que essa entidade funcione, muitos mais irão morrer – incluindo crianças, as tais crianças de que o Estado Social europeu diz necessitar para sobreviver.

Todos os dias da minha vida me pergunto: e se fosse eu aquela mulher de burka, a ver a vida por detrás de uma grade de pano, impedida de sair, de estudar, de trabalhar, de ler, de escolher com quem e como quero viver?

A estilista Fátima Lopes dizia há dias na televisão que nas festas privadas do Dubai as mulheres podem vestir as suas ousadas criações. Não sei se podem, se querem, ou se são intimadas a ousar dentro de casa, do mesmo modo que a cobrir-se da cabeça aos pés para saírem à rua.

Duvido muito de ‘liberdades’ caseiras para pessoas sem qualquer hipótese de voz ou liberdade pública. Por isso tenho tomado nota de todas as marcas de roupa que se prestam a fazer coleções de burquinis ou quaisquer outras farpelas coniventes com um sistema que torna as mulheres em coisas, objetos de decoração, luxúria ou modéstia, a mando dos sujeitos homens: não comprarei nem um lencinho tingido pela ganância despida de empatia desses criadores de moda.

Do mesmo modo, caso a Air France mantenha a sua disposição de obrigar as hospedeiras que voam para Teerão a trajar de acordo com os chamados ‘preceitos islâmicos’, não voltarei a voar nesta companhia aérea – nem em qualquer outra que a siga nestes absurdos propósitos. Os nossos consumos definem-nos; se o nosso voto vale cada vez menos, dado que o poder político surge progressivamente vergado a poderes nos quais ninguém votou, resta-nos o voto das nossas bolsas. Comprar ou não comprar é também uma escolha – a única eficiente num mundo regido pela lei do dinheiro.

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