Os portugueses que ajudaram a salvar o Nepal

A manhã já se aproximava do seu fim. O calor apertava. Daqueles carregados de humidade, que deixam a pele a colar. A vida corria na normal lufa-lufa, numa cidade com quatro milhões de habitantes, como Katmandu, sob a esquadria que os fios elétricos desenham no céu e uma poluição que se respira e ouve. De…

Entre os estrangeiros que se encontravam no país, mais de 20 eram portugueses. Destes, dois decidiram ficar. Até hoje.

Lourenço Macedo Santos, 36 anos, e Pedro Queirós, 34, conheciam-se dos anos na Universidade Católica Portuguesa, onde estudaram gestão. Lourenço trabalhava numa consultora desde o fim dos estudos, já Pedro tinha um currículo que envolvia várias grandes empresas, sempre ligado à área das vendas e marketing. Nos últimos tempos os dois amigos partilhavam dúvidas sobre o futuro e sentiam que tinha chegado o momento ideal para gozarem uns meses sabáticos. Queriam repensar as suas carreiras e tinham amealhado o dinheiro que lhes permitiria passar alguns meses a viajar pela Ásia.

Mochila às costas, fizeram-se ao Vietname, Camboja, Laos, Myanmar. Após três meses de viagem chegaram a Katmandu na tarde de 24 de abril, depois de 48 horas em aviões. Queriam visitar o Tibete e o Base Camp do Evereste, por isso dirigiram-se imediatamente a uma agência de viagens para tratarem das necessárias e complicadas autorizações. Ali deixaram os passaportes e, exaustos, instalaram-se no segundo andar do hotel Choice, na zona de Thamel, uma espécie de Bairro Alto de Katmandu, onde as ruas estreitas estão repletas de lojinhas dedicadas ao trekking. “Era um daqueles hotéis duvidosos, onde nada funcionava, mas também custava 10 dólares por noite para os dois”, recorda Pedro. Não foi preciso muito tempo para que dormissem profundamente.

No dia seguinte despertaram prontos para conhecerem Katmandu. O primeiro destino estava definido: subir a torre Dharahara, o edifício mais alto do Nepal, com 62 metros, considerado património da UNESCO. Já com a máquina fotográfica ao pescoço e pronto para sair, Pedro esperava por Lourenço à porta do quarto. Nesta altura, precisamente às 11H56, a terra começou a tremer. “Começámos por achar que era um comboio a passar, mas logo percebemos que era um terramoto fortíssimo”, diz Lourenço, que depressa se juntou a Pedro debaixo da ombreira da porta do quarto, fazendo uso os ensinamentos de escola. Ali ficaram, agachados e agarrados um ao outro, tentando não cair. Pode parecer um cliché, mas estes foram efetivamente os mais longos dois minutos da vida de Pedro e Lourenço. “Pareceram horas. Naquele momento só se pensa em sobreviver, entimos que a morte está mesmo ali, iminente. Ouvíamos os gritos, os vidros a partirem, o prédio não parava de abanar”, recorda Lourenço. Naquela eternidade, falaram um com o outro sobre o que deveriam fazer se o prédio desse sinais de desmoronamento. Pensaram atirar-se pela janela.

Quando a terra parou, fizeram como todas as outras pessoas: desataram a correr para fora do edifício em busca de uma zona aberta. E tiveram aí uma espécie de epifania: foram a um multibanco e levantaram o máximo de dinheiro que conseguiram. Depois, entraram na primeira loja que ainda encontraram aberta e compraram mantimentos. “Antes que toda a cidade colapsasse”. Até este momento continuavam sem conseguir avisar ninguém em Portugal, onde a maioria das pessoas ainda dormia, dada a diferença horária. Acabou por ser um ucraniano que encontraram ao pé do hotel que lhes emprestou um telefone: cada um enviou uma mensagem às respetivas irmãs. Estavam vivos.

Nesse mesmo dia andaram mais de 20 km. Queria perceber a dimensão do que se tinha passado. O primeiro destino foi a torre Dharahara, a mesma que tinham planeado visitar. Estava destruída, tinha tombado na diagonal e com ela levado a vida a 180 pessoas. “Por todo o lado havia prédios destruídos, hospitais improvisados, gente morta no chão, gente a chorar a seu lado. As piras de cremação ao longo do rio Bungamati eram tantas que depressa faltou a lenha na cidade”. Nada os podia ter preparado para o que estavam a ver.

Nessa noite, fizeram o que fizeram milhares e milhares de nepaleses: decidiram dormir num parque, a céu aberto. Eram os únicos estrangeiros. “Víamos o medo no rosto das pessoas, e nós também o sentíamos. Tenho 34 anos, mas naquele momento só queria o colo da minha mãe”, desabafa Pedro. A meio da noite arriscaram e regressaram ao hotel, e foi aí que sentiram mais uma réplica, de magnitude 6,4. Quando, ao amanhecer, saíram do quarto, depararam-se com um hotel fantasma, mas foi também nesse momento que conheceram uma espanhola que os levou até ao Dwarika’s, um hotel de luxo, dirigido por mãe e filha, Ambika e Sangita Shreshka, que também estão ligadas à Business and Professional Women Nepal, uma associação que procura reforçar o papel das mulheres no país, e que se tornou cúmplice de Pedro e Lourenço.

Os primeiros quilos de arroz

Através de familiares conseguiram um voo para os levar para a Índia a 1 de maio. Tinham quatro dias e queriam usá-los para ajudar. Mas antes tinham de resolver um problema: recuperar os passaportes que tinham ficado na agência de viagens. Este acabou por ser o grande desafio que tiveram até dia 29, data em que finalmente recuperaram os documentos e focaram as suas energias na ajuda aos outros.

Já de passaportes na mão, rumaram a um supermercado e compraram 50 kg de arroz e 400 bananas que distribuíram no parque onde passaram parte da primeira noite. Nesse mesmo dia compraram mais 600 kg de arroz. Tudo com o seu próprio dinheiro.

À medida que iam distribuindo os alimentos, os jovens portugueses tiravam fotos às pessoas com uma bandeira nacional e um cartaz improvisado onde se lia ‘Obrigado Portugal’, que depois partilharam nas redes sociais, com os amigos e conhecidos que já acompanhavam a viagem da dupla pela Ásia. Quase imediatamente começaram a aparecer propostas de ajuda e donativos. “Em menos de um dia as pessoas já nos tinham transferido mil euros. Para a minha conta pessoal!”, revela Pedro. Nas primeiras duas semanas receberam 60 mil euros e, no total, até à data, 270 mil, vindo de 2700 pessoas, e dos quais 150 mil estão ainda disponíveis. Foi viral. “As pessoas estavam a enviar tanto dinheiro que depressa percebemos que tínhamos de nos comprometer a ser rigorosos e transparentes, por isso fomos sempre dizendo tudo aquilo em que gastamos dinheiro. E nunca gastámos um tostão connosco. Ainda hoje cada um de nós paga as suas despesas no Nepal”, explica Pedro.

Bastaram pouco mais de 48 horas para não terem dúvidas do que iriam fazer. Quando chegou o dia 1 de maio, não apanharam o avião. “As pessoas aqui de Portugal diziam-se que éramos uns anormais por não sairmos de lá”, recorda Lourenço. “A verdade é que podíamos ter regressado, em poucos dias já tínhamos ajudado bastante. Mas estávamos sempre a cruzarmo-nos com crianças e jovens – 35% da população do Nepal tem menos de 15 anos – que nos perguntavam ‘vocês voltam amanhã?’. Percebemos que queriam saber se íamos estar lá para eles ou se os íamos abandonar. Aquilo tomou conta de nós, não conseguíamos virar as costas.”

Continuaram a distribuir comida: nos primeiros 25 dias de ajuda, considerados os mais críticos em termos de uma emergência humanitária, distribuíram 50 toneladas de comida, um pouco por todo o Nepal. “Começámos a pé, depois arranjámos um táxi”. De seguida encontraram Kalash, um jovem de 30 anos com um carro, que não só os ajudava a transportar os alimentos como os encaminhou para um armazém que aceitava cartões de crédito. “O nosso dinheiro acabou no primeiro dia”. Depois arranjaram um camião e até chegaram a entregar oito toneladas de comida de helicóptero, numa parceria com a ONU. Acordavam às 6h da manhã e faziam viagens de cinco horas para levar comida a aldeias remotas. Dormiam três horas por dia. Em Katmandu, faziam a distribuição nos parques da cidade, chegando a ter filas de 500 metros de pessoas à espera de comida. E com cada saco de comida que entregavam, entregavam também um abraço._Em troca foram recebendo sorrisos. “As pessoas estavam sempre a agradecer-nos. Lembro-me de um homem me dizer que tinha perdido tudo, mas que ninguém tinha morrido e quanto à casa, talvez dali a 15 an onseguisse ter outra. E ainda assim sorria”, conta Lourenço.

Um campo cheio de esperança

No dia 10 de maio, o telefone de Lourenço tocou. Tinham chegado a Katmandu 350 pessoas vindas dos Himalaias. A aldeia onde viviam, Tatopani, tinha sido arrasada pelo terramoto. As terras deslizaram e não tinha restado nada além dos escombros. Pedro e Lourenço tinham passado os últimos dias a levar comida às zonas rurais do Nepal, as mais afetadas pelo terramoto. Sabiam bem o difícil que era atingir algumas destas aldeias perdidas – neste caso em particular, a ponte ruiu vetando estas pessoas ao isolamento. Resgatá-las já tinha sido uma missão quase impossível. Mas agora estavam ali, em Katmandu. Sem nada. Alguns nem a família tinham.

As monções davam os primeiros sinais e Pedro e Lourenço sabiam que tinham de encontrar uma solução. Urgente. Num descampado em Katmandu montaram 22 tendas, incluindo uma cozinha comunitária, um templo, tendas de estudo e um centro médico. Seis dias depois daquele telefonema abriam as portas do Campo Esperança. Sem qualquer separação de castas, ao contrário do que ainda existe no Nepal. Receberam todas as pessoas com uma refeição quente. Dias depois passaram a contar com mais uma ajuda: Maria da Paz Braga, 34 anos. A arquiteta, amiga de Lourenço dos tempos do liceu, também andava em viagem pela Ásia, mas com o marido, geólogo. Tinham saído do Nepal rumo ao Butão apenas duas horas antes do terramoto. “Ainda ficámos uns dias na Índia, mas deixou de fazer sentido continuar a viajar. Voltámos para trás para tentar ajudar”.

Ao fim de um ano – durante o qual tanto Pedro, como Maria da Paz, como Lourenço viveram quase sempre no Nepal – aquelas 350 pessoas – uma grande percentagem das quais são crianças e jovens – tornaram-se parte das suas famílias. Conhecem-lhes os nomes, as idades, as manhas, os sonhos. Viram-lhes brilhar os olhos quando entraram num elevador pela primeira vez. Ensinaram-lhes que podem ser o que quiserem, se se esforçarem. E ensinaram-lhes tudo o que eles quiseram saber sobre Portugal, que passou a ser uma espécie de segunda pátria para estes miúdos do Campo. Como é caso de Tsering Sherpa, 13 anos, obcecado por CristianoRonaldo, um dia pintou a bandeira portuguesa nas costas e acabou nomeado Cônsul Português do Campo Esperança. “É o mais novo de cinco irmãos e tratamo-nos como se fôssemos também irmãos. É um miúdo muito especial e um excelente aluno”, conta Pedro. A história de Simran, também com 13 anos, não é muito distinta. “É uma miúda muito inteligente e com uma sensibilidade fora do normal. Quer ser médica. Gosta de fazer discursos de boas-vindas a quem chega ao Campo e se lhe ligamos de Portugal a perguntar se precisa de alguma coisa, responder ‘Bring Your Love’.”

Construir mais do que abrigos

Quando descobriram que o tempo médio de permanência em campos de emergência é de 13 anos, Lourenço, Pedro e Maria da Paz perceberam que o regresso para Portugal continuaria adiado. Era necessário ajudar a reconstruir o país. Foi por isto que, a 1 de Junho, arrancou oficialmente o Projeto Saudade, que visava construir, não abrigos, mas casas, para os desalojados. O trio estudou várias aldeias nos arredores de Katmandu e escolheu Bistagaon, uma aldeia onde 37 das 54 casas foram arrasadas. Com isto em mente, e com a ajuda de um outro arquiteto português, João Caeiro, criaram 22 casas com fundações em betão armado e paredes e telhados em bambu. “A exigência era que as pessoas da aldeia participassem na construção e aprendessem como fazer”, afirma Lourenço, sublinhando que esta abordagem deu frutos, uma vez que a aldeia passou a ter 15 pessoas qualificadas para construir aquelas casas e que o podem fazer noutras aldeias como, de resto, já aconteceu.

Mas por muitas casas que sejam construídas, Maria da Paz não esquece o momento em que uma equipa de portugueses e nepaleses ergueu o primeiro telhado de uma destas casas. Assim como não esquece que foi no Nepal que engravidou, depois de cinco anos de tentativas e vários tratamentos.

Um ano depois do terramoto, o governo nepalês ainda não criou um plano para a reconstrução do país. E o trio de portugueses, mais uma vez, não quer ficar à espera. Por isso desenvolveram o Our Dream Village, um projeto definitivo para aqueles que vivem há um ano noCampor Esperança. “Queremos devolver estas pessoas aos Himalaias. Já fizemos um estudo geoológico e desenvolvemos um projeto que inclui 1200 casas, um centro de saúde e uma escola. Um investimento de cerca de 4,5 milhões de euros, dos quais 500 mil já estão angariados, sendo 150 mil doados por portugueses.”

Os alicerces de uma associação

Até novembro de 2015 – altura em que nasceu oficialmente a associação ObrigadoPortugal – Pedro, Lourenço e Maria da Paz eram só três jovens portugueses sem experiência em voluntariado. Mas três jovens que não só conseguiram angariar um valor considerável de dinheiro, como tinham concretizado projetos. E que querem continuar. Por isso acham que é altura de voltarem a apelar aos portugueses, de mostrarem que continuam no terreno e não foram só uma história bonita de início de Primavera. “Sem a ajuda dos portugueses não será possível continuarmos. E nós queremos continuar. Exportamos cortiça e vinhos, mas podemos exportar os nossos corações, exportar a nossa solidariedade que é algo que nos torna únicos”. Havendo ajuda, sonham estar a montar os alicerces de uma grande associação portuguesa de ajuda humanitária. “Quase todas as associações começaram com pessoas que estavam nos locais quando as coisas aconteceram e que quiseram ajudar”.

E, apesar que precisam de renovar apelos, continuam a receber apoios surpreendentes. O mais especial é, sem dúvida, de Artur Brito, um algarvio de 54 anos que a 25 de abril partirá de mota, numa Honda 125, da porta de sua casa em Faro, no Algarve, até à porta do Campo Esperança. “Ligou-nos a dizer que queria ajudar. É um homem que só tem uma perna, usa uma prótese e está disposto a fazer 11787 km de mota para ajudar. Este sim é um herói”, diz Lourenço. Se tudo correr bem, chegará a Katmandu a 10 junho, dia de Portugal. Um dia que seguramente será de festa. É que, do outro lado do mundo, passaram a haver crianças, e adultos, que apesar de nunca terem saído do Nepal sonham vir a Portugal. Conhecer o país, as pessoas e sobretudo ver o mar. Mas ainda mais do que isso sonham que a resposta à pergunta “vens amanhã?” continue a ser “claro que sim”.