Prince. A chuva caiu tingida de roxo

O músico de Mineápolis, autor do hino “Purple Rain”, morreu ontem, em casa. Tinha 57 anos e a sua inesperada morte deixou o mundo em choque.

Era uma noite de agosto quando o telefone tocou. Do outro lado uma amiga, também jornalista, dizia-me: “Parece que o Prince vem outra vez a Portugal”. Perguntei quando e nem quis acreditar na resposta: “Dali a dias”. Apesar das horas, tentei confirmar a informação. E era verdade. Prince estava em Portugal e ia dar um concerto surpresa no Coliseu dos Recreios. Seriam postos à venda três mil bilhetes, por isso, sem tempo a perder, nessa mesma madrugada comprei os meus. E ainda bem que o fiz. Não foi a primeira vez que vi Prince ao vivo. Esperava não ter sido a última.

Naquela noite, no Coliseu sentia-se no ar uma espécie de cumplicidade entre um grupo privilegiado por ter conseguido um dos poucos bilhetes para um concerto que ninguém esperava. Em palco, o músico de Mineápolis, acompanhado pela banda 3rd Eye Girl, mostrou que, quem domina um palco, domina uma plateia, mesmo quando faz um concerto que passa ao lado de muitos dos maiores êxitos.

Foram umas duas horas de concerto e quatro encores em que tanto recordou temas como “When Doves Cry”, “Diamonds and Pearls” e “Purple Rain”, como viajou por temas novos, alguns quase desconhecidos e ainda, para terminar, se apropriou despudoradamente do sucesso de Sinéad O’Connor “Nothing Compares 2U”, um tema que na verdade é da autoria do músico.

Para Prince era a música, acima de tudo. A dele e a dos outros, com igual importância. E por isso nunca se sabia bem o que esperar. Aliás, sabia-se: excelência, sempre. Por muito que soe a lugar-comum, aquele homem de apenas 1,58 era realmente um gigante em palco. Um génio que, logo no primeiro álbum “For You” (1978), lançado quando tinha apenas 20 anos, tocava, sozinho, 27 instrumentos. O mesmo homem que, quando tocou no intervalo da Super Bowl, em 2007, chovia torrencialmente e, perante o telefonema da produção para discutir a necessidade de fazer alterações, respondeu apenas: “Podem fazer com que chova ainda mais?”.

Prince morreu ontem, de causas ainda desconhecidas. “É com profunda tristeza que confirmo que o performer lendário e icónico Prince Rogers Nelson morreu na sua casa de Paisley Park, esta manhã, aos 57 anos”, pode  ler-se num comunicado oficial. Já este mês o cantor tinha cancelado um concerto em Atlanta, onde acabou, no entanto, por atuar dias depois. Terá sido após esse concerto que o avião em que seguia fez uma aterragem de emergência. Depois de assistido por uma forte gripe, a sua porta-voz, Yvette Noel-Schure, garantiu à CNN que Prince se encontrava “bem e em casa”. Sabia-se que, além do constante trabalho em música, Prince estava a escrever as suas memórias, com edição prevista para 2017. Por isso, a sua morte deixou o mundo em choque.

Namoro português O concerto daquela noite de agosto foi o quarto e último concerto de Prince em Portugal. O músico tinha-se estreado no nosso país a 15 de agosto de 1993, no Estádio de Alvalade, e repetiu cinco anos depois, a 15 de dezembro de 1998, no Pavilhão Atlântico. Nesse mesmo dia deu um segundo concerto em Lisboa, na discoteca Lux. “Fomos abordados pela produtora do concerto. O Prince queria dar um segundo concerto, mais pequeno, num clube.

Curiosamente a nossa sala, na altura, era toda roxa! Ele esteve o dia todo a ensaiar no Pavilhão, deu um concerto de três horas e às 3h e tal da manhã estava a entrar no Lux como se tivesse acabado de acordar. Eu estava a passar discos para entreter as pessoas até ele chegar e quando ele chegou fui cumprimentá-lo e ele agradeceu-me a música que tinha estado a tocar”, recorda Rui Vargas, DJ, programador musical do Lux e autor do programa “Música com Pés e Cabeça”, da Antena 3.

Curiosamente, na segunda música, Prince pediu desculpa, mas como estava muito fumo na sala não podia cantar mais, iria apenas tocar e caberia a e caberia a Larry Graham, uma lenda do funk que o acompanhava naquela tournée, cantar. Mas nem por isso perdeu o sentido de humor: “Estava uma pessoa com um telemóvel, o que na altura ainda era raro, e ele pegou no aparelho e fingiu que estava a falar com alguém, a dizer que não entendia porque é que essa pessoa não estava ali, a ouvi-lo.”

Dois anos depois, a 18 de julho de 2010, Prince voltou a Portugal, para subir ao palco do festival Super Bock Super Rock, no Meco. Foi aqui que contou com a colaboração de Ana Moura, que cantou temas como “A Sós com a Noite” e “Casa da Mariquinhas”, com a guitarra de Prince como companhia, que no final a apresentou como “Your sister, Ana Moura”, acrescentando “I love this country!”.

Foi no final de 2008 que a fadista teve o primeiro contacto com o músico. “A assistente pessoal do Prince contactou os meus agentes holandeses porque ele queria assistir a um concerto meu. Mas antes de decidir qual o concerto falei com ele ao telefone. Estava no aeroporto. Eram oito da manhã e eu com uma voz horrível porque de manhã a minha voz é grave, pareço um homem. Não consegui dizer uma palavra. Foi tudo tão surreal! Lembrei-me logo de estar sentada no chão a olhar para a televisão a ver os videoclips do Prince. Sempre fui fã do Prince e de repente ele estava-me a ligar”, disse em entrevista ao jornal Sol, em outubro de 2009. “Ele estava muito entusiasmado, disse que adorava a minha musica e a minha voz e que um dia me queria explicar aquilo que sentia que existia na minha interpretação. Ele é muito espiritual. Ouvir isto do Prince, fez de mim uma pessoa mais feliz.”

Acabaram por se encontrar num concerto da fadista em Paris. No final, jantaram juntos e apenas aí Prince lhe explicou como tinha um dos maiores músicos do mundo chegado a uma jovem fadista portuguesa à data com apenas três álbuns editados: “Dão-lhe imensos CDs e, um dia, estava com a Chaka Khan na casa que tinha acabado de comprar e resolveu ir ver os CDs que tinha por ali. Pegou no meu e diz que sentiu que a minha música tinha a beleza da casa, tinha a ver com o que ele estava a sentir.”

Nunca mais perderam o contacto e, menos de dois meses depois, Prince veio a Lisboa visitar Ana Moura. “Esteve cá três dias e queria conhecer a noite lisboeta. Tinha-lhe falado do Bairro Alto e da Tasca do Chico, mas tinha-lhe explicado que era quase impossível ir lá porque eram ruas estreitinhas, sem hipótese de fuga. Mas ele insistiu. Entrámos em dois carros, seguranças num e nós no outro com um segurança. Ele estava com o vidro aberto e as pessoas, ao verem aqueles dois carros no Bairro, começaram a espreitar e desataram aos berros e a bater no carro quando perceberam que era ele. Eu estava nervosa, o motorista também, mas olhei para a cara do Prince e ele estava tranquilo e continuava a insistir que queria ir à Tasca do Chico”. Não foram, acabaram num bar com música cubana.

No verão seguinte, Ana Moura subia então ao palco do Super Bock Super Rock com Prince. A fadista remeteu-se ao silêncio, tendo, no entanto, passado todas as suas fotos dos perfis das redes sociais para preto.

Uma vida musicada Natural de Mineápolis, onde nasceu a 7 de junho de 1958, Prince Rogers Nelson foi provavelmente dos artistas mais completos que a história da música já viu. Cantor, compositor, letrista, guitarrista, baterista… A música nunca guardou mistérios para um homem que questionou sempre barreiras. As da raça, inicialmente, quando não aceitou ser rotulado como mais um artista de música negra. E depois todas as outras. Influenciou músicos do funk ao rock, passando pela eletrónica. Questionou o poder da internet, brincou com o seu próprio nome. Marcou gerações. Diariamente compunha e gravava música. Disse,  numa entrevista, “A strong spirit transcends rules.” A ele, Prince, nunca houve regras que o limitassem.