E as crianças senhor?

Às vezes temos a sensação de que começamos a ficar maluquinhos. Porque certas referências que tínhamos como ‘certas’ começam a desaparecer. O casamento, por exemplo, significava para toda a gente o compromisso entre um homem e uma mulher para a fundação de uma família. Mas hoje já não é isso: é uma união entre dois…

Outro exemplo é a palavra ‘sexo’. Para o comum dos mortais, ‘sexo’ era sinónimo de ‘género’. Um ser humano era do sexo feminino ou do sexo feminino – e o seu ‘género’ era o mesmo. Mas hoje já não é. Uma pessoa pode ter um determinado sexo e um género diferente. O sexo tem a ver com o físico, o género tem a ver com a mente. Um ser humano pode ser ‘fisicamente’ um homem mas sentir-se ‘mentalmente’ uma mulher. E ainda há o transgénero, que como o nome indica não é género nenhum. Enfim, uma confusão!

O BE, especializado nestas temáticas, lembrou-se agora de propor que o ‘cartão de cidadão’ passe a chamar-se ‘cartão de cidadania’. E porquê? Porque o BE acha que “não existe qualquer razão que legitime o uso de linguagem sexista num documento de identificação obrigatório para todos os cidadãos e cidadãs nacionais”. Linguagem sexista? Mas quando se fala em ‘cidadão’ está-se porventura a pensar apenas nos homens? Só uma mente doentia podia ver nisso uma discriminação das mulheres. ‘Cidadão’ é um conceito, uma abstração. Até por isso o cartão é ‘de’ cidadão e não ‘do’ cidadão.

A necessidade de fazer referência explícita às mulheres no discurso político começou com Guterres, que em vez  de se dirigir simplesmente aos ‘portugueses’, passou a dizer: “As portuguesas e os portugueses”. Mas julgo que o fazia para conquistar o voto feminino. Guterres queria explicitar que o seu discurso também se dirigia às mulheres. Queria agradar-lhes.

Mas, voltando ao cartão de cidadão, se formos por aí começarão a colocar-se outros problemas. Teremos de transformar a Ordem dos Advogados em ‘Ordem das Advogadas e dos Advogados’ (ou o inverso). E a ‘Ordem dos Médicos em ‘Ordem das Médicas e dos Médicos’. E isto já é facilitar, pois estas designações deixam de fora os transgéneros, podendo por isso ser consideradas discriminatórias.

Já agora, nas estações de comboios ou nos aeroportos deverá deixar de se dizer “Senhores passageiros”, para passar a dizer-se “Senhoras passageiras e senhores passageiros”. Se alguém disser “Senhores passageiros, dirijam-se à porta 24”, só os homens deverão avançar; todas as mulheres deverão manter-se onde estão.

Também na linguagem jornalística os profissionais deverão deixar de escrever “os refugiados” para passarem a dizer sempre “as refugiadas e os refugiados”. E se estendermos isto ao reino animal, quando num restaurante quisermos comer caracóis deveremos pedir: “Traga-me por favor um prato de caracóis e caracoletas”.

Não é por acaso que certas forças que contestam este modelo de sociedade são as mesmas que querem acabar com todas as referências, com as convenções, com as verdades adquiridas. O combate do BE trava-se em todas as frentes. Mas vendo bem, ao referir-se “às portuguesas e aos portugueses” – como diz sempre Catarina Martins – o BE está a fazer uma distinção de sexo, está a acentuar que há diferenças. Pelo contrário, quando se usava simplesmente a palavra ‘portugueses’, essa divisão não se fazia. Os portugueses eram todos. Estavam todos no mesmo saco, em pé de igualdade, sem distinções sexistas.

Por aqui se vê que o tema é muito mais complicado do que parece. Antes, as coisas eram simples: o uso do plural, feito por regra no masculino, englobava toda a gente: os homens, as mulheres, as crianças e os que não se acham homens nem mulheres.

Com a ideia peregrina de levantar uma questão que ninguém colocava, criou-se uma confusão dos diabos. Até porque, ao fazer-se referência explícita às ‘mulheres’, a par dos ‘homens’, deixam-se de fora as crianças. E isso será justo? Já agora, por que se diz ‘as crianças’ e não se diz também ‘os crianços’? Aqui privilegiou-se o feminino. Mas acho que as crianças do sexo masculino não se vão zangar por isso.