Câncio afasta-se de Sócrates

Durante meses, Fernanda Câncio foi referida em artigos da imprensa e reportagens televisivas sobre a Operação Marquês. A jornalista sempre contestou ser apresentada como ex-namorada de José Sócrates e, mais ainda, surgir associada à Operação Marquês. Agora, num texto de nove páginas da Visão desta semana, é a própria quem vem a terreiro contar a…

Mas, ao fazê-lo, entra, em alguns casos, em contradição com posições anteriores, inclusive de Sócrates. Noutros casos, deixa dúvidas sobre os esclarecimentos que apresenta.

Expor-se ou não, eis a questão

“É com imensa repugnância e tristeza que me vejo forçada a fazer estes esclarecimentos públicos, já que me obrigam a entrar em domínios que considero serem os da minha vida privada, que sempre preservei e continuo determinada a preservar” – começa por dizer a jornalista no artigo na Visão.

Recorde-se que, em outubro, um mês depois de sair da prisão de Évora, José Sócrates tornou pública uma foto de um jantar com um grupo de amigos realizado em plena noite eleitoral. Juntaram-se à mesa para assistir ao que acabaria por resultar numa vitória do PSD e a divulgação  dessa imagem valeu-lhe a crítica de Fernanda Câncio – que veio defender que o antigo primeiro-ministro estava a legitimar as incursões mediáticas e a invasão de privacidade.

No entanto, agora, na Visão, é a própria Fernanda Câncio quem revisita o último ano e meio da sua vida, partilhando, inclusive, alguns momentos da relação pessoal com José Sócrates. Com “repugnância e tristeza”, como a própria descreve, a jornalista do DN diz-se “forçada” a vir a público para combater aquilo que diz ser uma “tentativa de destruir” a sua “reputação pessoal e profissional”.

As casas e as férias de luxo

Formentera, Veneza, Menorca. Uma casa em Tavira e um apartamento de 2,2 milhões de euros no Largo do Caldas, em Lisboa. Durante a sua relação com o antigo primeiro-ministro, Câncio fez férias que, num dos casos, custaram  quase 20 mil euros entre os dois casais (Carlos Santos Silva e mulher também estiveram presentes em Espanha), mas nunca perguntou o preço. “Quando alguém próximo faz um convite para passar férias, não é costume perguntar se é a pessoa que nos convida que paga ou se é outra”, justifica.

Sobre o apartamento no Caldas, a jornalista defende que o facto de ter manifestado a Sócrates interesse na casa, num telefonema intercetado pela investigação, não significa que o objetivo fosse comprarem-na juntos. E aqui entra em contradição com Sócrates, pois perante o juiz de instrução, quando foi detido, o socialista justificou o episódio da eventual visita à casa de 2,2 milhões de euros como uma conversa entre dois namorados que estavam a ponderar “juntar os trapinhos” e viver juntos.

Sabia ou não que ele tinha ‘massa’?

Até ao “enorme choque” com que diz ter recebido a notícia da detenção de Sócrates, a 21 de novembro de 2014, Câncio garante que nunca desconfiou do estilo de vida que o antigo governante mantinha.

As viagens ao estrangeiro quando iam de férias, o dia a dia em Paris, os jantares em restaurantes de luxo, tudo isso, diz, enquadrava-se na realidade com que se deparou quando, em 2000, conheceu a “família alargada” do socialista. E não destoava do quadro que, mais tarde, a comunicação social foi pintando em relação a Sócrates: “Saíram regularmente notícias nas quais se falava na fortuna da família, se dizia que a mãe é rica, que o avô era rico, que os tios são ricos”. Por isso também não é de estranhar, acrescenta, que num sms tenha referido a Sócrates que era “um ex-PM com casa em Paris” e “cheio de massa”.

No interrogatório perante o juiz Carlos Alexandre, porém, Sócrates apresentou outra versão. Nomeadamente, o antigo primeiro-ministro garantiu que “há muito tempo” que Fernanda Câncio “sabia” das suas “dificuldades” financeiras. 

De onde vinha tanto dinheiro?

Câncio acreditava que, além dos proventos de família, o salário que Sócrates recebia como consultor da farmacêutica brasileira Octapharma bastava para explicar “a sua capacidade económica” – apesar de, no passo seguinte, admitir ter ficado “surpresa” com os gastos que têm sido atribuídos a Sócrates no período em que esteve a ser investigado.

“Independentemente da campanha de calúnias de que sou alvo, é natural que haja gente bem intencionada e séria que se questiona sobre como podia eu ‘não saber’ (…). Se fizesse ideia da relação pecuniária entre Carlos Santos Silva e José Sócrates teria feito perguntas por considerar a situação, no mínimo, eticamente reprovável”.

Com esta passagem, a jornalista do DN apresenta, na verdade, uma das mais assertivas críticas ao antigo primeiro-ministro, condenando a sua disponibilidade para receber avultadas quantias de um amigo, numa atitude que contrasta com a postura que adotara até este momento.

E também apanhou Sócrates de surpresa. O i escrevia esta semana que o “esclarecimento” de Câncio não agradou a Sócrates. Segundo fontes próximas, o antigo governante “não gostou do que leu, não entendeu o timing e não gostou que lhe fossem feitos julgamentos éticos”. Já os   advogados do ex-primeiro-ministro não quiseram fazer quaisquer comentários, considerando que o tema “não é relevante”.

Ao juiz de instrução Carlos Alexandre, Sócrates explicou que a relação com Santos Silva, amigo de décadas, não era mais que uma demonstração inesgotável e desinteressada de amizade – um argumento a que o Ministério Público não atribuiu credibilidade.

Os “empréstimos” que o Ministério Público foi acompanhando ascenderiam, na tese da acusação, a dezenas de milhões de euros – entre entregas em numerário, a compra da casa de Paris e pagamentos de serviços de diversa ordem. Mas esses empréstimos, cujo valor a defesa de Sócrates estima ser substancialmente inferior ao calculado pelos investigadores, terão tido sempre por base uma intenção de retorno. Sócrates aceitava as ajudas do amigo mas frisando sempre o compromisso de que pagaria de volta tudo aquilo que recebesse. Não ter uma contabilização objetiva desses valores não invalidaria, para o socialista, essa intenção de devolver as verbas.