Patti Smith. Um comboio que transportasse uma linhagem

Para lá da homenagem às vozes que sustentam a sua, bem para lá de um mero resgate de memórias, M Train é uma canção onde o tempo presente e o tempo passado estão ambos presentes no tempo futuro.

Uma encantadora diletante, mimetizando todos os rituais, num xamanismo em segunda mão. Assim procura invocar na sua pequena mesa arrumada a um canto entre a chávena de café, a tosta de pão escuro e um pequeno pires de azeite, o seu panteão pessoal, e assim o comboio significa também uma linhagem, mais do que a memória ou a viagem, existe uma tentativa de Patti Smith apanhar essa composição, dar-lhe seguimento, e é assim que os seus livros convocam vultos como Genet, Burroughs, Kerouac & Cia, o inevitável Rimbaud, e Sylvia Plath, Akhmatova, Mayakovsky, entre tantos, mas tantos outros.

Se inicialmente chega a flirtar com a hipótese de escrever um livro sobre coisa nenhuma, a verdade é que imediatamente Patti Smith busca um quadro romântico, os sedutores do imaginário entre a vertigem e o abismo, com a sua combinação de vadiagem, solidão, beleza e traição. Se se tornou um ícone do movimento punk rock, é na sua escrita que se sente mais encontrada, e prefere ver-se como escritora porque foi isso o que fez toda a vida: escrever. A sua influência inspiradora faz dela uma musa do lado activo, pela capacidade de se deixar possuir pelas qualidades que admira. A escrita de Patti Smith não é propriamente original, nem particularmente elegante ou poderosa, mas é leal e envolvente, funciona como médium que sintoniza as frequências da melhor literatura transgressora e lírica da tradição moderna e a embala, partilhando a sua própria história, como uma herdeira que traz no sangue o rasto dessas furiosas revelações. Nas recensões ao livro destacou-se muito a qualidade melancólica desta escrita, talvez usando reflexos e ecos não se possa produzir senão uma literatura de destroços, em que o trabalho para reaver o passado se assemelhe a uma colecção de perdas, um testamento sentimental:

“Tinha à volta de mil e trezentos ienes e quatro fotografias em cima da mesa: uma da minha filha Jesse em frente do Café Hugo, no Place des Vosges, duas, ambas desfocadas, do queimador de incenso no túmulo de Akatagawa, e uma da lápide da poetisa Sylvia Plath, no meio da neve. Tentei escrever alguma coisa sobre a Jesse, mas não consegui, pois a sua cara fazia-me lembrar a do pai e o palácio maravilhoso onde vivem os fantasmas da nossa antiga vida. Meti três fotografias no bolso, depois concentrei-me em Sylvia, rodeada de neve. Não era uma boa fotografia, mas o resultado de uma penitência de inverno. Decidi escrever sobre Sylvia. Escrevi para ter eu própria alguma coisa para ler. // Parecia-me que andava em visita de médico aos suicidas. Akutagawa. Dazai. Plath. Mortos pela água, por barbitúricos e por monóxido de carbono”…

Nos seus relatos a intensidade não é uma chama que logo se nos impõe, consumindo-nos o fôlego, mas há um encantamento que se produz como o de ouvir alguém desabafar continuamente, num padrão distendido, que da música sabe o jogo de variações, repetições ganhando umas sobre as outras, inflectindo de novo, melhor, ajuizando, criando um lugar poderoso na sua intimidade, mas convidativo, transmissível. Há no seu modo de contar, descrever, ajuizar, algo que nos devolve àquela frase que Faulkner terá escrito, mas que foi Javier Marías quem a separou, citando-a: “O que a literatura faz é o mesmo que um fósforo no meio de um campo em plena noite. Um fósforo quase nada ilumina, mas permite-nos ver quanta escuridão há à nossa volta.” Patti Smith vai para lá das sucessivas homenagens e do revoluteio biográfico, faz do seu testemunho uma educação, da sua atenção um modo de corrigir o mundo, sem precisar de se lhe colocar em oposição. Calando-o. Isso basta.

A sua escrita guarda outro mundo, uma convivência em que o tumulto cessou mas perdura o fascínio. Anota sonhos, desenvolve-os, serve-nos “um relógio sem ponteiros”, pondo em causa não só a matéria e os processos do tempo mas a sua razão e eficácia: “Fechei o caderno e sentei-me no café a pensar no tempo real. Será um tempo ininterrupto? Incluirá apenas o presente? Serão os nossos pensamentos nada mais do que comboios a passar, sem paragens, sibilando por enormes cartazes de imagens sucessivas? Captando o fragmento de uma ideia num lugar à janela, seguida logo de outra num enquadramento idêntico? Se eu escrever no presente e começar a divagar, estarei ainda no tempo real? O tempo real, pensei, não pode ser dividido em secções como números no mostrador de um relógio. Se escrever acerca do passado ao mesmo tempo que vivo no presente, estarei ainda no tempo real? Talvez não haja passado nem futuro, apenas o presente perpétuo que contém a tríade da memória. Olhei para a rua e notei que a luz do dia estava a mudar. Talvez o sol se tenha escondido atrás de uma nuvem. Talvez o tempo tenha deixado de existir.”

 

Tradução: Helder Moura Pereira

N.º de Páginas: 280

Preço: 17,70€

Edição: Quetzal / Maio de 2016