Desgoverno nas 35 horas

A geringonça é “uma máquina complexa, com muitos parafusos, que funciona”. A definição de Catarina Martins aplica-se bem ao caso das 35 horas na Função Pública, com a adaptação de que nesta questão há vários parafusos soltos e ainda não sabemos se a coisa vai mesmo funcionar.

Desgoverno nas 35 horas

A situação é tão ou mais complexa que a própria geringonça em si: falta um mês e 10 dias para que todos os trabalhadores em funções públicas passem a ter um horário de trabalho de 35 horas. Todos? Não, isso nunca será possível e os partidos de esquerda interiorizaram que a mudança não se pode fazer de um dia para o outro. Ao que o SOL apurou, não vai ser a derrapagem da entrada em vigor em alguns setores, nomeadamente no da Saúde, que vai pôr em causa a saúde da geringonça.

Mas “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, como dizia Manuela Ferreira Leite. Se os partidos que apoiam o governo estão disponíveis para ‘fechar os olhos’ à dificuldade de repor o horário das 35 horas na totalidade da Função Pública, não aceitam que o Governo protele para além do razoável a entrada em vigor da medida.

Foi essa suspeita que levou tanto o PCP como o Bloco de Esquerda a levantarem a voz, depois de o PS ter feito entrar o seu projeto na Assembleia, onde apontava claramente para uma aplicação faseada das 35 horas na Função Pública. Costa foi obrigado a recuar perante a chuva de críticas dos parceiros comunistas e bloquistas.

A gestão “a ver se pega” – como lhe chamou um dirigente da geringonça – foi imediatamente contestada pelos parceiros de esquerda. Na terça-feira, António Costa manifestava-se “um pouco surpreendido com a polémica” e dizia à esquerda o que a esquerda queria ouvir: as 35 horas entram em vigor a 1 de julho, não haverá aplicação “faseada” e o que vem escrito no projeto do PS (a tal “aplicação faseada”) é apenas uma “válvula de segurança”. “Não se trata de uma aplicação faseada, trata-se de um mecanismo de ajustamento”, disse o primeiro-ministro.

A frase serviu para contentar a esquerda, ainda que no mesmo dia o ministro das Finanças, no Parlamento, tenha mostrado as suas dúvidas sobre a possibilidade de entrada em vigor do horário das 35 horas para todos os funcionários públicos, com a exceção daqueles que têm contrato individual de trabalho, que passou a ser utilizado a partir de 2009. 

Centeno veio defender a “norma transitória” com empenho. “Existe a necessidade de considerar uma norma transitória que coloque num horizonte temporal bem definido e completamente claro, que não ponha em causa nem do ponto de visto financeiro nem do ponto de vista dos serviços a transição que todos desejamos estável”, disse no Parlamento, na terça-feira, em resposta a uma pergunta da deputada bloquista Joana Mortágua.

A mini-crise desta semana começou quando o PS apresentou o seu projeto sobre as 35 horas, com uma versão que permitia atirar a entrada em vigor das 35 horas para o fim do ano. A “válvula de segurança” desvalorizada politicamente por Costa mas acarinhada economicamente por Centeno diz o seguinte: “Nos órgãos e serviços em que se verifique a necessidade de proceder à contratação de pessoal, a aplicação do tempo normal de trabalho pode ser, em diálogo com os sindicatos, e até 31 de dezembro de 2016, ajustada às necessidades, para assegurar a continuidade e qualidade dos serviços prestados”.

Desde o início que as 35 horas são motivo de polémica no Governo. Mário Centeno sempre resistiu a comprometer-se com a medida – pelo menos relativamente às datas para a sua entrada em vigor – enquanto Costa anunciava a data de 1 de julho logo em fevereiro. No mesmo dia em que Costa anunciava que o horário das 35 horas ia entrar em vigor no verão, saía uma entrevista de Mário Centeno em que o ministro das Finanças recusava a comprometer-se com datas.

É verdade que o Bloco e o PCP queriam, no arranque do governo, a “reposição imediata” do horário das 35 horas e também aí tiveram que ceder. No debate do Orçamento do Estado, Joana Mortágua interrogou Centeno sobre se é possível a entrada em vigor das 25 horas antes de julho, Centeno respondeu assim: “A questão que se coloca, do ponto de vista da ação governativa, é uma questão de gradualismo. As 35 horas são um objetivo programático deste governo, estão inscritas no programa de governo num contexto orçamental que estamos já a preparar e estaremos seguramente prontos para, no momento em que tivermos de tomar decisões sobre a implementação das 35 horas, estas decisões sejam tomadas”.