Raduan Nassar: o Prémio Camões que abandonou a literatura

Sem comentários, o brasileiro e ex-escritor Raduan Nassar recebeu a notícia de que lhe fora atribuído o grande troféu da língua portuguesa, o Prémio Camões. A chamada de Portugal encontrou-o em casa, na fazenda de Lagoa do Sino, a três horas de carro de São Paulo. Ali, onde seria errado dizer que se retirou, tem…

Raduan Nassar: o Prémio Camões que abandonou a literatura

Continuou a repetir o mesmo a amigos e aos jornalistas… «Mas uma obra tão minguada…» E é. Um romance e uma novela – Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978) –, para lá disso só um pequeno volume de contos, Menina a Caminho (1997), reunido já longos anos após ter virado as costas à literatura. Depois há um ensaio que até hoje permanece inédito em português, ‘A Corrente do Esforço Humano’, publicado na Alemanha em 1987, e, na mesma situação, um conto isolado ‘O Velho’, que fez parte de uma antologia francesa (Des Nouvelles du Brésil) publicada em 1998.

Só lendo as não muitas mas certamente bastantes páginas que este brasileiro de origem libanesa, hoje com 80 anos, deixou para se entender como não foi preciso mais para fazer dele um nome incontornável da nossa literatura. 
Entre as várias vozes que saudaram a escolha de Raduan Nassar, o escritor brasileiro Milton Hatoum – também de ascendência libanesa, e que recebeu a bênção do outro quando começou a publicar – talvez seja quem mais possa ter a dizer, uma vez que é em grande medida o mais notável dos herdeiros da influência literária daquele autor culto. «Foi um prémio merecido por sua obra plena e poderosa», disse Hatoum, lembrando que o mexicano Juan Rulfo também só publicou um romance e um livro de contos – Pedro Páramo e A Planície em Chamas, tendo sido publicado já postumamente a novela O Galo de Ouro (1980) – o que não o impediu de deixar um legado que transformou a paisagem literária sul-americana, sendo atribuída às suas pouco mais de 300 páginas um papel fundador do chamado realismo mágico.

Hatoum refere como sinais distintivos da obra de Nassar, e particularmente da sua indiscutível obra-prima Lavoura Arcaica, a prosa que «alcança uma força lírica rara», um poderoso e intemporal testemunho que evoca a parábola do filho pródigo e em que a ressonância bíblica é evidente. «Um livro mestiço, brasileiro, em que temas como incesto e violência são tratados de forma dissonante da literatura que se praticava na época» em que foi publicado, remata Hatoum.

Três horas para o veredicto

Ao anunciar o nome do 12.º brasileiro a receber o galardão, o júri destacou «o uso rigoroso de uma linguagem cuja plasticidade se imprime em diferentes registos discursivos verificáveis numa obra que privilegia a densidade acima da extensão». Com um valor de 100 mil euros, não foi difícil para o júri alcançar a unanimidade nesta 28.ª edição do Prémio Camões. Já este ano Raduan Nassar fora um dos 13 escritores escolhidos para a longlist do Man Booker International Prize, com a tradução inglesa de Um Copo de Cólera, e o seu nome estava na maior parte das listas que os membros do júri trouxeram consigo para a reunião em Lisboa. Assim, não foi preciso mais de três horas para se alcançar um veredicto, com o resultado a ser comunicado ao fim da tarde no Hotel Tivoli pelo secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado.

Antes de ser atribuído a Nassar, Portugal e Brasil estavam empatados com 11 autores de cada país distinguidos desde que o Prémio Camões foi instituído, em 1988.

O júri incluiu este ano dois do lado português (a professora e ensaísta Paula Morão e o crítico literário, poeta, comentador político e colunista Pedro Mexia – que tinha já integrado o júri que em 2015 atribuíra o prémio a Hélia Correia). Do lado brasileiro estavam os professores universitários, críticos e escritores Flora Süssekind e Sérgio Alcides do Amaral, e, em representação dos países africanos, estiveram desta vez o autor moçambicano Lourenço do Rosário, reitor da Universidade Politécnica de Maputo, e a ensaísta são-tomense Inocência Mata, actualmente radicada em Macau.

Este ano, se tivesse sido observado o critério da rotatividade, o prémio teria sido entregue a um escritor africano. Mas dado que a regra não existe no regulamento a não ser por cortesia, o júri preferiu aclamar um escritor que «não cede às pressões do mercado sobre a produtividade ou presença pública mais constante. Cria a obra literária em total independência aos valores que lhe são antagónicos».

‘Os pós-modernos que me desculpem, mas…’

E não é preciso perguntar a Nassar por que não quis fazer uma carreira literária, uma vez que a verdade nos seus livros sempre se confronta com esse desejo de libertação que, se levado a sério obriga a um ato de renúncia. A paixão levou-o primeiro a dedicar-se inteiramente à literatura depois de alguns anos no jornalismo, e num segundo momento a mesmo paixão determinou-o a procurar a «vibração da vida» noutro lugar. Na última entrevista que deu, em 1996, insistiu que «qualquer autor isolado era sempre muito pequeno perto da complexidade infinita da vida». Foi mais longe até que isso, e manifestou a sua perplexidade diante da forma como «a chamada modernidade no sistema de produção, com sua ênfase na eficiência, vinha esmagando certas manifestações de humanismo». Há uma inquietação que pontua as frases de Nassar, que deixa claro como este sentiu a ameaça de «uma ordem que enquadra e oprime», da «rotina burocrática» e do «aprimoramento das formas de controlo da individualidade».

De resto, o incómodo que o seu abandono da literatura ainda provoca é mais revelador da própria incapacidade que há da parte dos agentes que participam no frenesi mercadológico. Esse que tende a promover os livros adaptando receitas do marketing que vende quaisquer outros produtos. Assim se constrói uma contradição dolorosa para aqueles escritores que se sentem dirigidos ao cumprimento de rituais que vulgarizam o prestígio da literatura. Nassar deixou-o claro ao falar da sua «dificuldade para entender certos procedimentos transplantados p’ra literatura, quando se recorre inclusive a cálculos de raiz quadrada», e concluindo como face a isto nos resta «a clandestinidade como único espaço onde poderemos exercer nosso humanismo agonizante».

«Como o mundo não começa e termina na literatura, arrisco dizer que estou em diálogo com meu tempo, só que no terreno da agricultura», disse Nassar na mesma entrevista. «Os pós-modernos que me desculpem, mas isso prova que podemos viver passando ao largo das suas preocupações».

E, no fim, foi nas páginas dos livros que escreveu que Nassar começou a ensaiar o seu ato de renúncia, e ali mesmo encontramos o mais impressionante testemunho de como a literatura lhe serviu para se reconhecer e ao lugar onde se sentia mais envolvido com o mundo: «ah, meu irmão, não me deitei nesse chão de tangerinas incendiadas, nesse reino de drosófilas, não me entreguei feito menino na orgia de amoras assassinas? não era acaso uma paz precária essa paz que sobrevinha, ter meu corpo estirado num colchão de erva daninha? não era acaso um sono provisório esse outro sono, ter minhas unhas sujas, meus pés entorpecidos, piolhos me abrindo trilhas nos cabelos, minhas axilas visitadas por formigas? não era acaso um sono provisório esse segundo sono, ter minha cabeça coroada de borboletas, larvas gordas me saindo pelo umbigo, minha testa fria coberta de insetos, minha boca inerte beijando escaravelhos? quanta sonolência, quanto torpor, quanto pesadelo nessa adolescência! afinal, que pedra é essa que vai pesando sobre meu corpo? há uma frieza misteriosa nesse fogo, para onde estou sendo levado um dia? que lousa branca, que pó anémico, que campo calado, que copos-de-leite, que ciprestes mais altos, que lamentos mais longos, que elegias mais múltiplas plangendo meu corpo adolescente!».