Quando a justiça desportiva não canta de galo

Escrevo de Madrid, mais concretamente em Leganés, onde o clube de futebol local, ganhou o direito desportivo de, na próxima época, poder competir na mais importante competição de futebol profissional espanhola.

Este pequeno subúrbio madrileno, rejubila com o feito histórico de “Los Pepineros” um clube humilde com quase 90 anos de história, em que o jogador de futebol mais conhecido que alguma vez envergou a “camiseta” azul e branca foi…Samuel Eto’o em 1997/1998, na altura, (recorde-se e pasme-se) cedido pela equipa B do Real Madrid. Assim, aqui em Espanha, tal como em Portugal, são várias as equipas de futebol profissional, que se regozijam com a aquisição do direito desportivo de, na próxima época desportiva, poderem ombrear com os clubes mais fortes do Futebol nacional.

Contudo, existe uma pequena “grande” diferença que demonstra e evidencia o que está mal no Futebol português. Enquanto que, em Espanha, o Futebol profissional se confina aos resultados desportivos apurados dentro do recinto de jogo e premeia aqueles que obtêm desfechos desportivos legalmente obtidos, em Portugal, lidamos agora na denominada “secretaria”, com as consequências jurídicas e sobretudo desportivas, do denominado “Caso Mateus”, na sequência da recente decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa proferida…10 anos depois dos factos controvertidos.

Como se sabe, no processo nº 2141/06.1BELSB, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa declarou nula a decisão do Conselho de Justiça da FPF, de 22 de Agosto de 2006, que se limitou a confirmar, em sede de recurso, a decisão da então Comissão Disciplinar da LPFP, de 1 de Agosto de 2006, que sancionou o Gil Vicente com a pena de descida de divisão.

Por comunicado, já do conhecimento público, decidiu a Direcção da Federação Portuguesa de Futebol não recorrer dessa decisão jurisdicional", recomendando" à Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), também parte demandada no processo e cuja Comissão Disciplinar, à altura, foi a autora do acto primário sancionador, "que leve a cabo os actos necessários à integração do Gil Vicente na Liga no mais curto espaço de tempo possível".

Assim, ficou a LPFP numa situação jurídico-desportiva difícil e complexa, pois não acautelada de qualquer disposição regulamentar que previsse a súbita e inesperada decisão do referido processo judicial ou de um eventual alargamento que da mesma resultasse, terá de, em breve, e em momento próprio, colmatar a supra referida lacuna.

Entretanto, também através de comunicado, a LPFP confirmou que, por recomendação da Federação, decidiu acatar a decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa, que deu razão ao Gil Vicente no ‘caso Mateus’ que terá, assim, de ser reintegrado no principal escalão do futebol português. A Liga informou publicamente, que pretende levar «com caráter de urgência» o assunto à Assembleia Geral de Clubes, para deliberar sobre o modelo competitivo a adotar em 2016/17.

Segundo alguns meios de comunicação social, existe um grupo alargado de clubes médios e pequenos que não se opõem à subida do Gil Vicente mas quer ser ouvido para discutir o novo quadro competitivo, matéria da competência exclusiva da LPFP.

Neste momento, parece que há uma posição maioritária que recusa o alargamento para 20 clubes com quatro a descer no fim da próxima temporada. Este grupo de clubes, prefere um campeonato com 19 equipas, descendo duas e com um play-off entre o antepenúltimo e o 2.º da 2.ª Liga, ou então a descida de três equipas num campeonato a 20, mas só com a promoção de um clube do escalão secundário. Para além destas questões fundamentais, alguns clubes alegam também que deve ser ponderada a possibilidade de o Gil só ser integrado na época de 2017/18. A seu tempo, veremos qual o modelo competitivo escolhido. Estas são decisões de alteração regulamentar fundamentais, deveriam merecer uma análise profunda de todos os intervenientes, e que o fator tempo não o permite, pois a nova época inicia-se já a 1 de Julho e é preciso saber quais as SADs que participarão nas competições profissionais de futebol .

Todavia, falta um pequeno pormenor que poderá ter, ou não, uma influência decisiva no desfecho deste caso intrincado.

Recorde-se que, a SAD do C.F. Os Belenenses é interveniente no mencionado processo judicial na qualidade de contra-interessado, podendo ainda ter uma palavra a dizer, pois corre ainda prazo para poder recorrer daquela decisão judicial. A figura jurídica do contra-interessado justifica-se na lide administrativa, pelas implicações lesivas que pode ter a invalidação ou a anulação de um ato administrativo em terceiros, e pela certeza e segurança visadas pela ordem jurídica.

Assim, neste complexo imbróglio jurídico, é urgente saber qual a posição processual da referida SAD, para que o trânsito em julgado ocorra e, subsequentemente, aquela decisão judicial do Tribunal Administrativo de Lisboa, seja uma inevitável e intransponível imposição legal. E porquê? Porque a aprovação de alterações em sede de LPFP, a qualquer regulamento federativo em competições desportivas não concluídas ou ainda não homologadas (como é o caso) só pode produzir efeitos a partir do início da época desportiva seguinte, salvo quando decorrer de imposição legal, judicial ou administrativa, sendo que esta, no meu entendimento, apenas se obtém com o mencionado trânsito em julgado, e para tal, é necessário que a FPF, LPFP e a SAD do C.F. Os Belenenses comuniquem da decisão de não recorrerem daquela sentença, com a maior brevidade possível.

Deste modo, as deliberações que a Assembleia-Geral da LPFP é forçada a tomar, evidenciam que algo não está bem na articulação da Justiça Desportiva e da Justiça Administrativa/Criminal ou outra, e a demora de decisão um órgão de soberania do Estado Português, não se compadece com os termos e prazos urgentes das competições desportivas profissionais.

E para quem pensa que o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), veio definitivamente resolver as caricatas situações decorrentes dos Casos Boavista (2014/2015) e Gil Vicente (2016/2017) desengane-se, pois a Lei do TAD, também prevê que as decisões dos colégios arbitrais são passíveis de recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo se as partes acordarem recorrer para a câmara de recurso do próprio TAD, renunciando expressamente ao recurso da decisão que vier a ser proferida, bem como, e em todos os casos, a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional e de impugnação da decisão com os fundamentos e nos termos previstos na Lei de Arbitragem Voluntária.

Assim, o problema dos Casos Boavista e Gil Vicente, bem como, e eventualmente aqueles que poderão resultar do denominado Caso “Jogo Duplo” não é só da Justiça Desportiva ou dos erros daqueles que proferiram as mencionadas decisões que, posteriormente, (e após demasiado tempo) foram revogadas pelos Tribunais. O problema é também de ordem legislativa, e é necessário que o Governo e a Assembleia da República adotem medidas legais, para que novos Casos semelhantes a estes, não mais sejam repetidos em Portugal.

Pois a Justiça Desportiva, perante estes Casos desportivos não canta de Galo, mas alguém tem de impor ordem na “capoeira”.

Madrid, 8 de Junho de 2016

Lúcio Miguel Correia​

Advogado na MGRA Soc. Advogados (lmc@mgra.pt) e Docente Direito do Desporto Universidade Lusíada de Lisboa