“Quando se vê esta cidade dá vontade de dizer aleluia”

Aos 10 anos já sabia que queria ir para História e os professores pediam-lhe para dar as aulas. Hoje conhece Lisboa como ninguém e diz que «não há buraco nesta cidade onde não tenha estado». Anísio Franco acaba de lançar o livro Caminhar por Lisboa, que serviu de pretexto para uma conversa sobre histórias e…

“Quando se vê esta cidade  dá vontade de dizer aleluia”

Há uns anos falou-me no B.Leza [bar com música ao vivo cabo-verdiana], que ficava no Palácio Almada-Carvalhais, e foi graças a si que o visitei.

Era maravilhoso… Agora o palácio está ao deus-dará , infelizmente.

É sempre preferível os edifícios estarem ocupados, não é?

Claro, porque estão vivos. Se chove, tapa-se o buraco. Se não está lá ninguém a viver, vai chovendo até cair. É uma barbaridade, porque esse palácio é dos únicos espaços do século XVI que mantêm o pátio intacto.

É um dos poucos do século XVI porquê? Os outros foram destruídos pelo terramoto?

Essa ideia de que o terramoto destruiu tudo é uma ilusão. As pessoas vivem nas casas, precisam de mais espaço ou de espaços distintos, com outra vivência, e vão alterando o projeto.

Não havia o respeito pelo original que temos hoje?

Nunca houve essa consciência, tirando a Casa dos Bicos. A Casa dos Bicos é um caso exemplar. Curiosamente há registo de um viajante que vivia lá e que tinha deixado dinheiro e então mandou um rapaz buscar o que lá tinha dentro. Como o rapaz nunca mais aparecia, mandou um segundo – isto durante o terramoto – e esse também nunca mais apareceu. Até que resolveu ele próprio entrar e encontrou os dois à bulha a ver quem é que ficava com as coisas dele [risos].

A ideia de que o terramoto arrasou Lisboa não corresponde à verdade?

Houve muita coisa que não caiu no terramoto: S. Cristóvão, S. Miguel, Alfama inteira. Pior foi o incêndio e mesmo assim… Há um desenho do Paço Real, que toda a gente diz que foi arrasado pelo maremoto, com as paredes de pé. O interior ardeu todo, mas porquê? Porque os ingleses roubaram o palácio e depois resolveram deitar-lhe fogo para escamotear a desgraça que tinham provocado. Os terramotos em Lisboa são uma constante. Em 1531 houve um grande terramoto que destruiu praticamente Lisboa, depois houve no século XVII. Era normal. Porque é que só o de 1755 é que arrasou a cidade? Claro que caíram paredes, houve desastres graves, com certeza, mas poderia ser reconstruído. Na verdade, o terramoto justificou a vontade do Pombal de fazer um novo plano para a cidade.

Foi um bom pretexto para levar adiante as suas ideias?

Para alargar as ruas, para esquematizar, para levar a cabo uma reconstrução da cidade. E felizmente, porque o Plano da Baixa é um dos melhores planos, se não o melhor, do século XVIII, uma coisa de importância mundial.

Começa este livro com um episódio que se passou quando tinha 10 ou 11 anos. Foi mesmo abandonado longe de casa pelo seu irmão e uma prima mais velha?

É verdade. Andei à procura na memória quando é que isto tudo [o desejo de conhecer a cidade] começou. E lembrei-me desse episódio. Estava no Restelo e morávamos do lado de lá, na Portela. Imagine a minha situação, assustado com a hipótese de ficar abandonado no extremo oposto da cidade. Mas isto foi muito pedagógico, eles sabiam o que estavam a fazer, não fizeram aquilo por maldade.

Pensei que tinha sido por maldade.

Não, não era maldade nenhuma. O meu irmão tinha dois anos mais do que eu, e achava que eu tinha de aprender sozinho. Foi fantástico, digo-lhe. Ganhei a noção de que as contrariedades provocam crescimento. A partir daí tomei a iniciativa sozinho de avançar pela cidade fora e descobri-la.

Como se orientava?

Tinha um mapa muito rudimentar, onde vinham as ruas de Lisboa e os museus. E eu ia apontando. ‘Isto já está, isto já vi’. Acho que tenho ainda esse mapa em casa dos meus pais. E é engraçado que durante esse período em que comecei a descobrir a cidade houve imensa coisa que desapareceu. Nomeadamente museus que estavam assinalados nesse mapa, como a Galeria de Arte Moderna, em Belém, que ardeu, ou o Museu dos Bombeiros. Eu tinha ideia, quando era miúdo, que os museus eram eternos e foi com enorme surpresa que percebi que afinal até os museus morrem. Talvez tenha sido isso que me despertou a vontade de trabalhar nesta área da preservação e salvaguarda do património.

Andava sozinho?

Sozinho. Aqui no Museu de Arte Antiga, onde trabalho, havia uma funcionária que me adorava. Eu era miúdo, pequeno, e ela achava muita graça eu andar ali nas galerias. O museu não era como hoje. Era muito mais soturno e havia salas de que tinha medo. Eu sabia onde era a sala do Zurbarán, por exemplo, e fugia. A Leonor, essa funcionária do museu, quando eu vim para aqui trabalhar lembrava-se perfeitamente de mim pequenino, porque andava comigo pela mão.

Nessa altura já queria trabalhar no Museu de Arte Antiga?

A minha relação com este museu foi mudando. A certa altura achei que esta não era a arte de que eu gostava, porque tinha tias que iam a Itália e traziam-me slides do Miguel Ângelo e da Capela Sistina, e eu dizia ‘Isto sim, é arte’. E estas muito aterrorizantes dizia ‘não, eu quero é o Vaticano e o Museu do Louvre’ – e fui encontrar esse paralelo no museu da Gulbenkian.

Ali é que se sentia bem.

Então passei a frequentar muito mais a Gulbenkian. Aos 14 anos comecei a assistir a cursos na Gulbenkian com o professor Manuel Rio-Carvalho, que também me achava graça, embora ele fosse um snobe, porque no meio daquela gente muito composta aparecia um menino lá sentado. Ele também dava aulas na Fundação Ricardo Espírito Santo. Como não tinha idade para frequentar esses cursos, pedi-lhe autorização para ir assistir às aulas, e ele concedia-me. Foi logo aí, aos 14 anos, que decidi ir para História da Arte, porque aos 10 tinha ideia de que ia para História.

Era bom aluno?

Era ótimo aluno a História, até demais, mas fui sempre preguiçoso e nas outras aulas era mediano. Sabia o suficiente para passar. Uma vez tentei chumbar a História e escrevi um teste a gozar. Disse que os romanos usavam chinelos de pedra, coisas assim muito disparatadas. Quando a professora me entregou o teste, tinha Muito Bom. Fiquei furioso e fui queixar-me. E ela respondeu: ‘Para dizer aquelas asneiras é preciso saber muito’. [risos]

Às vezes tinha a sensação de que sabia mais do que a professora?

Não tinha a sensação, tinha a certeza. Até porque às vezes os professores pediam-me para dar eu a aula. E eu adorava, sempre adorei. Mas nunca andei a exibir o meu saber ou a querer passar por cima dos outros. Fazia era uma brincadeira – brincadeira não, que era uma coisa terrível: absorver os professores de História.

Com perguntas?

Tive uma professora que me adorava – e eu adorava-a – e então manipulei-a de maneira que ela dava aulas só para mim. Aquilo era uma balbúrdia, porque depois a aula toda desfazia-se e eu ficava na conversa com ela. E foi sempre assim com os professores de História, tirando uma. Essa professora tinha sofrido muito com o Regime, e quando viu o meu nome ficou encanitada. Eu, fatalmente, chamo-me Anísio Salazar Franco. E ela tinha mesmo um repúdio por mim e chegou a mudar-me para a última fila. Anos depois tornámo-nos muito amigos.

Tinha ouvido uma história diferente em relação ao seu nome.

O quê?

Que os seus pais eram tão reacionários que tinham escolhido esse nome.

Não, não. De maneira nenhuma. O meu pai até andou na candidatura do Humberto Delgado. É mesmo uma questão de família: a minha mãe é Salazar d’Eça e o meu pai é Costa Franco. E eu chamo-me Anísio Salazar d’Eça Costa Franco. São nomes que se juntaram por um acaso. Mas nós fazemos brincadeiras com isto. A minha irmã achava que se havia de casar com um Mussolini e de ter um filho Adolfo [risos].

Diz aqui na apresentação do livro que depois daquele episódio em que foi ‘abandonado’ prometeu a si mesmo conhecer cada rua, cada beco, cada igreja. Conseguiu cumprir essa promessa?

Consegui. Tenho ideia de que não há buraco onde não tenha estado nesta cidade. Até porque fiz esse reconhecimento de uma forma sistemática. Mais crescido, já durante a faculdade, marcava com um amigo meu, o Celso Mangucci, todos os domingos às nove da manhã junto ao Cais das Colunas.

Aquilo a que chamava os passeios de domingo…

Porque é que era no domingo? Porque sabia que era o dia em que as igrejas estavam abertas, por causa das missas. E tinha de ser de manhã porque as missas são de manhã. Se lhe disser que me falta conhecer duas ou três igrejas em Lisboa se calhar não estou a mentir.

Apesar de conhecer tão bem a cidade, ainda lhe acontece ser surpreendido?

As cidades orgânicas têm essa capacidade. Lisboa foi crescendo de uma forma quase natural, foi tendo sobreposições, com terramotos, com problemas, e isso causa este efeito surpresa ao longo da cidade. Fico radiante quando descubro uma parte da cidade que não conheço, mas é raro ser surpreendido.

Lembra-se da última surpresa que teve?

Lembro. Foi já depois do livro publicado. Há uma escada ao pé do Beco do Arco Escuro, atrás da Sé, que eu sempre achei que ia dar a qualquer lado. Só que a escada sobe e depois acaba, nem é num beco, é uma coisa estranha, um patamar cimentado que vai acabar num triângulo.

Vai afunilando?

É uma perspetiva falsa e como está pintado de cinzento claro dá uma sensação cinematográfica. Achei extraordinário.

O seu conhecimento da cidade tem-se aprofundado ao longo dos anos?

Sim, depois passei para uma fase mais íntima e que tem a ver com aquilo que acho que é conhecer realmente uma cidade: conhecê-la com os seus habitantes. Há pessoas que me dizem ‘Paris é uma cidade lindíssima’ – e é, não há dúvida. Já tive uma paixão tremenda por Paris mas gradualmente tenho-me afastado porque é uma que cidade repudia os seus visitantes. Aliás o chauvinismo tem acabado com a cultura francesa. Para mim uma cidade deve acolher os visitantes. Porque é que Lisboa é a minha cidade? Eu adorava viver em Roma, estaria lá tão bem como aqui…

Mas…?

Há um pequeno detalhe. Lisboa tem muito mais sítios ligados à minha história e à minha vida. Está cheia de amigos. Em Roma também tenho alguns e é engraçado, quando me lembro de Roma não me lembro do Coliseu, lembro-me de uma amiga que vive perto do Coliseu. Isso é que são as cidades vivas. Quando vou no carro com amigos, vou sempre a dizer ‘Aqui viveu não sei quem’, ‘ali foi não sei quê’, ‘ali vive aquela minha amiga’. A cidade para mim é isso.

É o conjunto entre os espaços, os edifícios e as pessoas que os habitam?

Gosto desta cidade porque nunca me sinto só. Há sempre uma âncora. Se me acontecer alguma coisa, seja onde for, sei que quase me posso arrastar até à porta de alguém. Aliás, depois da faculdade fiquei sem casa em Lisboa. Eu tinha era escovas de dentes em várias casas. [risos] Vivi como um cigano durante dois ou três anos e não me sentia nada mal. Dormia na casa de um, na casa de outro e por aí fora. A minha casa era a cidade, era qualquer casa na cidade. Ainda hoje tenho essa sensação.

Alguma vez se perdeu em Lisboa?

Nunca. Infelizmente, porque às vezes gostava de me perder – não é para me encontrar, como dizia a Florbela Espanca, mas para descobrir outras partes da cidade, que não as previstas.

E memórias desagradáveis associadas a zonas da cidade, também tem?

Claro que tenho. Nem tudo é maravilhoso… Mas incomoda-me sobretudo a destruição sistemática da cidade. Qualquer dia não temos nenhum interior na Baixa de Lisboa de gaiola pombalina. São todos em betão. Temos obsessão estúpida de classificar as fachadas e por trás fazem-se monstros como aquele Frankenstein tristemente famoso onde vivia o José Sócrates. Não é um dos melhores prédios do arq.º Norte Júnior mas é um belo prédio. Para mim se calhar era melhor deitar aquilo abaixo do que manter-lhe a pele e tirar o interior. Por que não há nenhuma lei a proteger os interiores dos edifícios? Em Portugal não temos um único interior civil do século XVIII, sabia? Só igrejas e bibliotecas. Tirando duas salas no Museu Militar não há um único interior do século XVIII. E do século XIX também já não deve haver.

Nem nos palácios que há por aí?

Tudo desfeito. Em Inglaterra há vários, em França, idem, e até nos Estados Unidos da América, que têm meia dúzia de anos de história. Preservaram interiores históricos, porque sabem a importância dessas coisas. Isto para falar nos interiores, mas poderia falar do assassínio de avenidas inteiras. Não quero ser saudosista, mas ainda me lembro da avenida da República mais ou menos inteira. Agora parece Odivelas. O modelo urbano foi substituído por um modelo suburbano.

Isso também aconteceu em Nova Iorque. Os palacetes dos magnates foram substituídos por arranha-céus devido à pressão imobiliária.

O problema é destruir-se bom para construir-se mau. O Empire State, o Rockefeller ou o Chrysler são referências mundiais da arquitetura e as vivendinhas que lá estavam são umas entre muitas fin du siècle que havia muito melhor em Paris. O problema é substituir-se uma arquitetura de alguma qualidade por uma arquitetura deficitária. Mas não sou nada contra o desenvolvimento, fico radiante quando vejo um bom projeto.

Quer nomear algum recente?

A requalificação da Casa da Severa, na Mouraria. É um caso exemplar. Ou veja o Miradouro do Recolhimento, que era um baldio no Castelo. Ninguém imaginava que ali era possível fazer-se um miradouro contemporâneo. E quem está ali está no meio do Mediterrâneo, tem uma visão tão mediterrânica, tão bonita. Outra das minhas tristezas é a forma como estão os jardins. Se calhar sou de um tempo antigo, mas para mim os jardins deviam ter flores. Transformam os jardins em lugares de betão, de pedra, o que é muito simpático, para no inverno serem gelados e no verão serem verdadeiras frigideiras.

Não há bons exemplos, também?

O Jardim da Luz, de Carnide, é um jardim maravilhoso. Neste momento está cheio de hortênsias. Mas têm alguma coisa contra as hortênsias? Deve passar pela cabeça dos arquitetos paisagistas que é piroso ter flores.

Falou de algumas das suas embirrações. E zona favorita?

Há várias zonas e consoante o período do ano. Gosto muito desta zona onde trabalho e também adoro o Torel. É dos sítios mais encantadores de Lisboa.

É indiscrição perguntar-lhe em que zona vive?

Vivo numa zona mais anónima, nas Avenidas Novas. É um sítio muito bom para se viver. Há tudo, é direito e civilizado. Corresponde à minha ideia da cidade: um sítio acolhedor, um sítio para se estar bem. É preciso conhecer países quase desérticos, como o Irão, para se perceber que a cidade é o oásis, o paraíso. As cidades são sítios bons, foram construídas para proteger. O medo está no campo, que tem animais, tem lama.

Conhece o Irão?

Muito bem. Só este ano vou lá duas vezes.

Porquê?

Andava há muitos anos à procura de chegar a Ormuz. Tentei ir por Omã, mas eles não têm relações diplomáticas com o Irão e não podíamos atravessar de Muscat para o Irão. E depois apaixonei-me pelo Irão. Sabe porquê? Porque as pessoas são maravilhosas. São do melhor que já conheci no mundo.

E anda lá à vontade?

Sinto-me como se fosse em casa.

Em Lisboa temos o Beco do Arco Escuro, a Rua dos Cegos, a Rua do Forno do Tijolo, o Beco dos Toucinheiros…

Acrescente aí a Rua Triste Feia, que é aqui em Alcântara.

Lisboa tem uma toponímia muito curiosa. Conhecê-la também é uma forma de conhecer a cidade?

Lisboa tem uma toponímia fantástica. Interessa-me perceber – como aliás a todos os olisipógrafos – porque é que cada rua se chama assim. As cidades vão mudando, mas fica a toponímia. Na Mouraria temos o Beco das Olarias e o Forno do Tijolo, porque era a zona pré-industrial no final da Idade Média. No início dos Maias, ele diz “Em toda a vizinhança da Francisco de Paula…”. Agora ninguém percebe, porque a Francisco de Paula hoje se chama Presidente Arriaga. Por isso me chateia quando mudam os nomes das ruas.

Houve histórias que não pôde incluir neste livro?

Com certeza. Lisboa está cheia de histórias de pessoas. Isso é que é fantástico. Por isso gostaria de fazer outro guia com novos percursos. Até porque há imensa gente que vive na cidade e não a conhece.

Sabe qual é a última palavra no seu livro?

Sei. ‘Aleluia’. Foi propositado. É o que dá vontade de se dizer quando se vê a cidade de Lisboa.