‘Estamos a assistir a uma aliança histórica entre extrema-esquerda e extrema-direita’

Entrevista a António Barreto

‘Estamos a assistir a uma aliança histórica entre extrema-esquerda e extrema-direita’

Acompanharam o anúncio dos resultados do referendo sobre o Brexit em direto ou só viram no dia seguinte de manhã?

Maria Fátima Bonifácio (MFB) – Eu soube de manhã por SMS. Tenho uma filha que já lá está há 20 anos, tem nacionalidade britânica. Ela e o marido, que é inglês, foram deitar-se à uma e tal da manhã e acordaram em estado de choque. Eu também fiquei em estado de choque, até por razões sentimentais. Tenho uma longa relação com Inglaterra, com a história inglesa, com a cultura inglesa, e gosto muito dos ingleses. O presidente do Lloyds Bank, o António Horta Osório, às dez da noite disse a um amigo meu: ‘Vai-te deitar que isto está tudo resolvido’. Deve ter entrado em estado catatónico na madrugada seguinte…

António Barreto (AB) – Eu fui-me deitar na certeza de que este problema em Inglaterra tinha sido resolvido provisoriamente e que os grandes problemas passavam agora para a Europa. Fui-me deitar em sossego e quando de manhã recebi os alertas dos jornais no telefone julguei que qualquer coisa estava estragada. Liguei a televisão, vi a rádio e não acreditava. Fiquei realmente triste. Acho que toda a gente perdeu, ninguém ganhou.

MFB – O Boris Johnson – que foi, a meu ver, quem disparou isto tudo para conseguir eliminar o David Cameron – ficou ele próprio aflito quando viu o resultado. O David Cameron foi de uma extraordinária habilidade, porque demitiu-se imediatamente, contrariamente ao que tinha garantido antes, e disse ao Boris Johnson: ‘Agora pega tu no bebé’. Só que o bebé, em vez de pesar seis quilos, como pesava aqui o António quando nasceu [risos], pesa seis toneladas. O Johnson é um tipo genial, só que gerou uma tempestade brutal que deixou tudo de pernas para o ar. Mas há uma lição que eu retirei. Aliás já tinha essa ideia, mas agora não tenho qualquer dúvida: os referendos são uma péssima maneira de resolver problemas, uma forma de democracia direta extremamente primitiva. Porquê? Porque cada problema tem uma resposta ou A ou B.

Preto ou branco.

MFB – Acontece que a maior parte dos problemas, para não dizer todos os que merecem o nome de verdadeiros problemas, não se podem responder com sim ou não. Há o branco e o preto, mas também cinzento, talvez amarelo… Um referendo equaciona os problemas de uma forma binária e isso não é solução. Por outro lado, a opinião pública é extremamente volátil e manipulável. Recordo que o Hitler referendou na Áustria o Anschluss, a anexação da própria Áustria, e ganhou o referendo por 99 por cento. Ao contrário do que se pensa, a democracia direta não torna a representatividade mais genuína. Sei isso até pela minha experiência pessoal na Faculdade de Letras em 1975. Eu era uma demagoga extraordinária e manipulava assembleias de 500 e 600 alunos que não eram todos burros. A oratória, e os latinos sabiam isso, é um instrumento utilíssimo para manipular pessoas.

AB – Eu não partilho essa tua má impressão dos referendos. Reconheço que podem ser manipulados e podem dar resultados perversos. É um enorme risco. Mas vivi doze anos num país que recorria frequentemente a referendos e iniciativas populares. 

MFB – Já sei, a Suíça.

AB – Foi através de um referendo, por exemplo, que se deu o voto às mulheres, que nos anos 60 ainda não tinham direito de voto na Suíça. Foi um referendo que impediu uma tentativa racista, xenófoba, de pôr os estrangeiros na rua. Foi através de um referendo que há poucos dias, na Suíça, se rejeitou uma iniciativa que eu considero perigosíssima, que era dar a cada cidadão uns milhares de francos suíços por mês para poderem viver sem trabalhar.

O rendimento incondicional.

AB – Pela minha experiência considero que os referendos podem ser instrumentos úteis, podem ser maneiras interessantes de tomar posição, de fazer debates políticos, de tornar pública uma discussão séria. Ainda hoje lamento que os portugueses não tenham referendado a sua Constituição e que não tenham referendado, por exemplo, a adesão à União Europeia. A meu ver isso podia ter aumentado o sentimento de pertença dos portugueses seja à Constituição seja ao seu regime. Mas reconheço os perigos. 

E concretamente em relação ao Brexit?

AB – A situação inglesa atual, a meu ver, é aflitiva. Os europeus do continente vão ficar a perder sem a Grã-Bretanha cá dentro; a Grã-Bretanha vai perder. Aliás, já está a perder – economicamente, financeiramente, politicamente, e até emprego já está a perder. Anuncia-se já o desemprego de 50 mil a 100 mil pessoas só na City de Londres. Não penso que haja uma solução simples, do tipo a Europa reforça-se e a Inglaterra vai-se embora. Vai ser muito mais complicado. Nem a Europa nem os países europeus têm as políticas nacionais ou comunitárias adaptadas à nova situação política que se vive no mundo, à globalização, à perda de importância da Europa.

Perda de importância a que nível?

AB – A Europa tem hoje muito menos importância no mundo do que tinha há 50 anos. Quase não tem importância industrial, não tem capacidade de criar emprego e de inovar, está a envelhecer mais do que qualquer outro continente, não tem capacidade sequer para assegurar a sua própria segurança, está dependente dos Estados Unidos para isso. Estamos a assistir a uma espécie de junção histórica entre extrema-direita e extrema-esquerda, entre nacionalismos de esquerda e nacionalismos de direita, que estão satisfeitíssimos porque é a maneira que eles têm de lutar contra o capitalismo, contra a iniciativa privada, contra as liberdades ditas ‘burguesas’. O que aconteceu em Inglaterra é só mais um episódio – talvez o mais importante até hoje – mas vamos ter mais episódios deste género e que vão pôr a Europa numa situação cada vez mais difícil. E qualquer pessoa que me venha dizer que sabe ou que prevê qual vai ser a situação a cinco ou a dez anos está-nos a enganar.

MFB – Já vi na imprensa portuguesa o Brexit interpretado como uma renegação de todo o passado histórico inglês, porque em momentos cruciais – 1713 [Tratado de Utrecht, que pôs fim à Guerra da Sucessão Espanhola], 1815 [derrota de Napoleão na batalha de Waterloo], 1918 [armistício da Grande Guerra], 1945 [fim da II Guerra] – a Inglaterra foi sempre decisiva para definir o destino e o desfecho dos conflitos europeus. Isto é uma leitura errada da História inglesa. Os ingleses entraram nestas guerras todas para evitar a todo o custo que no continente europeu se formasse uma potência capaz de os invadir.

Que representasse uma ameaça.

MFB – A diplomacia inglesa no século XIX esteve sempre ativíssima não para se imiscuir nos assuntos da Europa mas justamente para influenciar a política dos estados europeus no sentido de não se repetir um Napoleão.

AB – E há a questão difícil e delicadíssima da imigração. Os europeus quiseram ignorar a questão dos refugiados e da imigração ilegal, depois de ignorar quiseram ocupar-se do assunto, mas com medo. Rapidamente na Europa havia dois partidos: o partido da abertura total e o partido do fecho total. Isso está tudo errado. Houve uma espécie de politicamente correto que é: não se pode falar em ‘controlar’ ou ‘gerir’ a imigração. E esta recusa começou a criar efeitos perversos em Inglaterra, está a criar em França, vai criar em Itália, está a criar na Suíça, já criou na Finlândia, vai criar na Suécia e na Holanda. Os países europeus têm de perceber que têm de ser suficientemente generosos e liberais para permitir que a Europa seja um continente de acolhimento, e suficientemente responsáveis para impedir que continue a proliferar esta espécie de tudo vale, esta política de portas abertas. E depois, cada vez que há um problema social, económico, industrial, cultural, aparece o bode expiatório dos imigrantes, da anarquia dos imigrantes, do terrorismo, dos preconceitos.

Estamos a dar argumentos à extrema-direita e aos partidos nacionalistas?

AB – À extrema-direita e à extrema-esquerda.

MFB – E atenção: a Inglaterra oficial é extraordinariamente liberal – libérrima – para com os estrangeiros. Ao longo destes 20 anos que a minha filha lá está, já fui parar a urgências de três hospitais diferentes. Nunca perguntaram se eu me chamava Antónia ou Joaquina, se era inglesa ou portuguesa ou francesa, só me perguntaram a idade, porque do ponto de vista clínico era a única coisa que interessava. E ofereceram-me os medicamentos! Nisso há uma discrepância enorme entre o que as instituições praticam e o sentimento comum dos ingleses. Queria só lembrar uma coisa que disse uma vez na televisão. Sei que o António vai ficar arrepiado… Eu conheço Londres desde os meus 15 anos, desde o tempo em que em Knightsbridge e em Chelsea todos aqueles senhores usavam chapéu de coco, bengala, pasta – mas uma pasta muito usada, porque já vinha dos pais e dos avós. Rolls Royce era ao pontapé. Agora não, são uns carros estapafúrdios… E eu disse um dia na televisão que esperava morrer numa cidade que fosse maioritariamente branca e cristã – não necessariamente religiosa, porque eu sou ateia. Fui insultada durante muito tempo, depois esqueceram-se. Em muitos sítios importantes – em Londres e não só – os ingleses são minoritários, minoritaríssimos. Uma das coisas mais belas e mais valiosas que a civilização europeia e ocidental tem é essa abertura ao cosmopolitismo, uma abertura ao outro, só que isso determina desmandos políticos que só podem dar mau resultado. Perde-se o controlo e é como dizia o António: ou tudo aberto ou tudo fechado. O Ocidente de uma forma geral, e a Europa em particular, tem uma cultura de autocrítica que toca as raias do masoquismo. Nunca vi uma civilização que tenha levado o sentido crítico – que em teoria e à partida é mais do que louvável – ao ponto de se tornar masoquista e levar a vida a dizer mal de si própria.

Gostamos de nos autoflagelar?

MFB – Não vejo mais civilização nenhuma fazer isto. Não existe! Isto é um exclusivo do Ocidente, que por um lado é uma das suas grandezas, mas quando atinge as raias do masoquismo é uma doença – e a Europa e a civilização ocidental estão doentes.

AB – Eu sou talvez mais favorável à mestiçagem. Sou desfavorabilíssimo é à justaposição de culturas da maneira como tem sido feita até hoje na Europa, ao multiculturalismo, uma espécie de incentivo natural à criação de guetos – bairros pretos, bairro amarelos, bairros castanhos, bairros aristocratas, bairros trabalhadores. A meu ver, só uma sociedade conseguiu encontrar uma espécie de compromisso, a sociedade americana. Porque nasceu assim, no século XVII-XVIII. Teve um problema sério que resolveu da pior maneira, com os índios, mas depois a sociedade cresceu assim. Há regiões de puro multiculturalismo, como Chinatown ou Little Italy, mas, visto do céu, há um entrosamento muito forte. Veja-se os nomes: do Congresso Americano aos desportistas, nunca se percebe quem é quem e donde vem, se são filhos de polacos ou de alemães, netos de paquistaneses ou sobrinhos de indianos. O apartheid na África do Sul era um regime legal, mas em muitos sítios do mundo é um regime que foi criado. Há zonas em Paris e em Marselha que são verdadeiros apartheids. Sou muito desfavorável a isso.

MFB – Concordo. Mas queria – como sempre – ser mais drástica. Este ‘cosmopolitismo’, que é uma virtude que não vejo em mais civilização nenhuma, acabou por conduzir a um multiculturalismo nefasto, que por sua vez gerou uma obsessão identitária. Hoje em dia todos os grupos querem ter uma identidade própria, reconhecida, respeitada e se possível positivamente discriminada. Esta obsessão identitária já chega ao indivíduo, que quer ser reconhecido fisicamente como único e especial e que faz tatuagens e piercings para não ter um corpo igual ao nosso. É horrível, isto. O Ocidente acabou a gerar este tipo de atitude. Desculpa António, se te interrompi.

AB – Estranhamente, estou razoavelmente de acordo contigo. Perdeu-se o valor da identidade nacional, que é irrecuperável. Seja pelo efeito do grupo, das classes, das tribos, das etnias, seja por efeito da União europeia e da globalização. E então valoriza-se na Europa, mais do que nos outros continentes, a pequena tribo, o grupo local, o bairro. Isto substituiu-se à aspiração de ter uma forte identidade nacional. Mas há ainda outra coisa: a democracia promove o igualitarismo por baixo. Eu sou favorável a valores e defendo sociedades que já não existem. Gosto de elites intelectuais, elites políticas, elites científicas, elites culturais. Prefiro a aristocracia do espírito à vulgaridade democrática. Sei que a democracia vai promover a vulgaridade moral, política, estética, etc., mas também sei que só este sistema nos dias de hoje é que me dá liberdade. É uma ambivalência e uma esquizofrenia, se quiseres.

MFB – Eu também sou democrata. Não conheço nem consigo imaginar nenhum regime político que possa não ser democrático, igualitarista, e me conceda liberdade. Liberdade individual e liberdade coletiva, porque como me disseste, e tive o cuidado de citar rigorosamente no livro porque achei uma pérola, ‘a minha liberdade individual, sem a liberdade dos outros, é como viver no exílio’.

Há pouco falaram de multiculturalismo. A esse propósito gostava de colocar uma questão muito concreta: o que pensam do uso de burcas na Europa?

AB – A nossa sociedade vive de vários princípios e valores. Um deles é a identidade pessoal. Tudo o que altere ou inviabilize a identidade pessoal acho que deve ser contido ou desmotivado ou mesmo proibido. Sou favorável à proibição de todos os procedimentos que encobrem ou alteram a identidade individual, porque é a liberdade de cada um. E não aceito o argumento de que isso são tradições culturais de cada país. As tradições envolvem a burca mas também a excisão, a tortura, a lei de Talião, cortar braços e dedos, e até o canibalismo – por que não? Tudo isto são tradições culturais. A sociedade liberal tem obrigação de interditar e desmotivar e proibir estes fenómenos anti-humanos, anti-liberais e anti-vitais. 

MFB – Se eu quiser ir ao Irão, ponho o véu. Adapto-me ao costume local. Por que razão o inverso não há-de ser também?

A Europa defende valores de tolerância…

AB – Também temos de defender a poligamia?! Se a Europa aceita que o multiculturalismo e a genuinidade cultural de cada povo tem de ser respeitada, então vamos aceitar a excisão das mulheres. Há países onde 70 a 80% das raparigas foram vítimas de excisão. Então vamos aceitar isso para a Europa.

Mas a burca não envolve uma forma de violência física sobre a pessoa.

AB – ‘Limpar’ a cara à pessoa não é uma violência?

A Fátima Bonifácio disse que se quiser visitar esses países põe uma burca. Isso já aconteceu?

MFB – Não, não! Deus me livre!

AB – Eu gosto de ir, gosto de ver, gosto de cheirar, de sentir e de ouvir.

MFB – O António tem curiosidade por tudo. Fizemos uma viagem à Escócia com a Maria Filomena Mónica e as nossas filhas, em que a regra era ‘cada um demora o que lhe apetecer a ver qualquer coisa’. Funcionou maravilhosamente. Mas o António cismou que havia de saber donde vinham as pedras usadas na construção dos edifícios. A raça das ovelhas que a gente via nas encostas também era muito importante. Eu sinceramente quero lá saber da raça das ovelhas! O António nunca está saciado. Eu contento-me com pouco. Atingi aquele limite em que tomei plena consciência, clara, límpida, de tudo o que eu não sei. E tive de estudar muito e de ler muito para perceber o que desconheço e já não vou ter tempo de conhecer.

Há um bocado afirmou que a civilização ocidental está doente. É um tom muito sombrio…

MFB – O pensamento está a evaporar-se gradualmente. Os intelectuais, no sentido de alguém que sabe o suficiente para ir além dos limites da sua profissão e intervém publicamente sobre questões políticas, culturais ou até filosóficas, são cada vez mais raros… Que pensamento novo é que se tem produzido nos últimos anos?

AB – Prêt-à-penser, Fátima. Antigamente tínhamos o prêt-à-porter, o prêt-à-manger. Agora é o prêt-à-penser. Compras frases feitas, compras pensamentos feitos…

Tudo embalado?

AB – Se você perder algum tempo – eu infelizmente perco demais – a ver televisão e ouvir notícias ou aqueles debates, verá o número de frases feitas que se usam. Eu já sei o que vão dizer. A economia tem de ser sustentada, a janela de oportunidade que é preciso aproveitar, um problema nunca é um problema só, os problemas transformam-se numa oportunidade para resolver os desafios da nação, fala-se assim. Você vê desde dirigentes políticos, deputados ou ministros, e cada vez mais empresários, intelectuais, professores da universidade que já não conseguem articular qualquer espécie de vocabulário que saia destas frases feitas. Há um pensamento automático que se põe a rolar e vai por aí fora sozinho.