‘A vida no espaço não é nada solitária’

Antigo piloto de treinos de caças, Chris Hadfield é um dos astronautas mais experientes do mundo. No livro Guia de um Astronauta para Viver Bem na Terra explica como o conseguiu e fala sobre as 4 mil horas que passou no espaço. Diz que lá em cima não sente a falta de nada, até porque…

Filho de um piloto de aviões comerciais, Chris Hadfield cresceu numa quinta noCanadá e tinha nove anos quando viu o Homem chegar à Lua. A partir daí começou a fazer tudo o que estava ao seu alcance para se tornar astronauta. E, apesar de as suas hipóteses serem próximas de zero, conseguiu: depois de ser o melhor aluno da academia de pilotos da Força Aérea norte-americana, candidatou-se a um lugar de astronauta em 1991 e foi selecionado após uma quantidade inacreditável de todo o tipo de testes.

Em Guia de um Astronauta para Viver Bem na Terra (ed. Pergaminho) Chris Hadfield conta a sua história e fala sobre as três missões espaciais em que participou. Na última delas, viveu 146 dias no espaço, a bordo da Estação Espacial Internacional.

A conversa com o SOL decorreu por telefone – o coronel Hadfield prefere fazer ele próprio as chamadas para garantir que não há atrasos.

Bom dia, coronel Hadfield, como está?

Estou muito bem, obrigado. Parabéns pela vitória de Portugal no futebol. Dominaram claramente o País de Gales.

Gosta de futebol?

Sim, claro, especialmente quando são jogos de nível mundial. E boa sorte para a grande final.

Está no Canadá neste momento?

Sim, estou a falar através do Skype. A ligação está boa ou prefere que lhe ligue através de um telefone normal?

Não é necessário, está excelente. Tenho 13 perguntas para si. Podemos começar?

Estou preparado para o seu número da sorte! [risos] Vamos a isso.

Levou algum amuleto consigo nas três missões espaciais que cumpriu?

Não levei propriamente amuletos, levei lembranças, coisas que me recordam a minha família, as escolas em que andei ou pessoas que foram importantes na minha vida. No entanto, no meu terceiro voo, em que fui o piloto da nave russa Soyuz, pusemos uma boneca no cimo da nave. Existe a tradição de pendurar um objeto que balança por causa da gravidade e nos mostra a ausência de peso quando os motores desligam. Normalmente é escolhido pelo filho de um dos astronautas e neste caso foi fornecido pela filha do comandante da Soyuz, o Roman Romanenko. Isso talvez possa ser considerado um amuleto.

E levou alguma coisa para a Estação Espacial para se sentir mais em casa?

Sim. Entre os meus haveres pessoais levei algumas fotografias da família. A estação parece um laboratório ou um hospital. É muito impessoal, mas temos uma pequena câmara para dormir, uma espécie de casulo, mais pequeno que uma cabine telefónica, e aí podemos colar algumas coisas pessoais. Levei fotos da minha mulher e dos nossos três filhos e algumas palhetas que foram feitas especialmente para esta viagem, porque há uma guitarra permanentemente lá em cima na estação e eu gosto de tocar. Mas de resto a NASA fornece tudo aquilo de que precisamos. Eles são muito bons nisso: a tornar a vida no espaço tão fácil e eficiente quanto possível.

E tinha tempo para tocar guitarra ou estava sempre ocupado?

Em nenhum sítio do nosso horário diz ‘tempo para tocar guitarra’. Se vamos fazer alguma coisa nossa, das duas uma: ou nos antecipamos ao planeamento e despachamos as tarefas mais depressa do que o previsto ou temos de o fazer durante as horas de sono. A NASA planeia o nosso tempo de forma extremamente apertada, um horário digital no computador diz-nos o que temos de fazer a cada cinco minutos durante os seis meses que passamos lá em cima. Eu roubava um pouco de tempo às horas de sono para tocar guitarra, ler, escrever à minha família ou tirar fotografias.

Os dias lá em cima também têm 24 horas?

Baseamo-nos num ciclo de 24 horas, porque é aquilo a que tanto nós [astronautas] como as equipas de apoio estamos habituados. Mas temos de escolher quais as 24 horas – podemos usar o fuso horário de Lisboa, Moscovo, Houston ou Tóquio. Como a maioria das pessoas que nos apoiam está em Houston e Moscovo, optamos por dividir a diferença e usamos o fuso horário de Greenwich, que é o mesmo de Lisboa. Por isso as pessoas acordam e a deitam-se em Lisboa à mesma hora a que os astronautas se levantam e se deitam na Estação Espacial.

Há uns meses falei com um cientista português que privou com Buzz Aldrin e ele contou-me que Buzz Aldrin se tornou um místico após a ida à Lua. Quando lhe perguntei porquê, ele explicou-me que foi devido à escuridão do céu quando é visto do espaço. Consegue descrever-me essa escuridão? Por que é ela diferente da escuridão do céu noturno que vemos a partir da Terra?

Quando os doze astronautas caminharam na Lua, e quando, depois disso, cada um de nós faz caminhadas espaciais, estamos diretamente no espaço, não há nada entre nós e o vazio do universo. Normalmente vemos o céu completamente colorido e filtrado pela atmosfera da Terra – mesmo olhando pelas janelas da estação ainda é algo distante e pequeno. Quando olhamos da janela de nossa casa lá para fora, não sentimos como se estivéssemos no campo ou no jardim, é como se estivéssemos a olhar para uma imagem do que há lá fora. Mas quando fazemos uma caminhada espacial, estamos verdadeiramente e diretamente na escura vastidão do universo. E a profundidade daquela escuridão é realmente infinita. Foi por isso que chamámos ao nosso último livro A Escuridão Mais Escura [The Darkest Dark, de Chris Hadfield, com ilustrações de Terry e Eric Fan]. Quando fizemos o nosso emblema de missão para o segundo e o terceiro voos, explicámos ao artista gráfico qual a cor que queríamos para o fundo e quase tivemos uma discussão: ‘Queremos que o fundo seja preto’. ‘OK’, disse ele. E nós: ‘Não. Tem de ser mesmo, mesmo preto. Preto como se puséssemos a mão e ele ficasse lá agarrado, um preto com profundidade’. Olhar para essa escuridão é uma experiência íntima e leva-nos a perceber verdadeiramente onde estamos, tanto no espaço como no tempo. Tenho a certeza de que era disso que o Buzz estava a falar.

Essa escuridão também é assustadora?

Toda a gente fica assustada com aquilo a que não está habituado ou com aquilo que não compreende. As crianças têm medo de todo o tipo de coisas, porque ainda há muita coisa que lhes escapa. Se pegassem em mim quando tinha 12 anos e me levassem para fazer uma caminhada especial, isso provavelmente seria assustador. Mas fui preparado e treinado. Aliás, uma das coisas que aprendemos quando o Buzz e os primeiros astronautas foram ao espaço é que a preparação para os voos não pode ser apenas técnica. Há também a preparação psicológica. A natureza profunda do que vemos e do que estamos a fazer muda a nossa vida e dá-nos uma perspetiva mais exata do mundo, do universo e da relação entre os dois. Para mim foi sobretudo uma experiência sedutora e instrutiva. Assustadora, não tanto.

Sendo a ida ao espaço uma experiência transformadora, as pessoas à sua volta notaram essa transformação?

Não acontece instantaneamente. Não estamos a levar uma vida normal e de repente alguém fecha-nos na estação. É algo que se decide cedo, algo para que se trabalha durante anos e se tivermos muita sorte somos escolhidos para astronautas. Perguntou-me se aqueles que vivem à nossa volta conseguem ver as mudanças. Acho que as principais mudanças acontecem ao longo dos trinta anos e a experiência de estar no espaço apenas ajuda a cimentá-las. Sim, mudamos a todo o momento e estar no espaço transforma-nos, mas sinto que quando voltei era fundamentalmente a mesma pessoa que tinha partido.

Além da sua família, do que sentiu mais falta quando esteve lá em cima? Da comida, de um bom banho de água quente, do ar livre?

Não sentimos falta dessas coisas. A vida na estação espacial não é uma vida de provações. É uma existência muito estimulante, muito preenchida, exigente e enriquecedora. Na cultura popular, o espaço é uma metáfora para a solidão, o que é curioso, porque não é nada solitário. [risos] As pessoas mais sós que conheci viviam no meio de cidades. O espaço pode não ser como alguns imaginam. Não passamos muito tempo lá em cima a sentir falta de alguma coisa ou a desejarmos estar noutro sítio qualquer. Claro que seria simpático ter uma fatia de piza, uma cerveja gelada ou tomar um duche quente. Mas tudo pesado, vale a pena prescindir dessas coisas. Sabemos que quando voltarmos ainda vai haver cerveja, piza e as outras coisas efémeras que tornam a vida divertida. [risos] A experiência de lá estar ultrapassa tudo isso.

É verdade ou é um mito que os astronautas não podem espirrar, porque o corpo é projetado a alta velocidade contra as paredes?

É um mito. Na verdade fiz essa experiência.

E o que aconteceu?

Há uma massa de ar e um pouco de cuspo que sai quando espirramos, mas é tão pequena que não se nota qualquer consequência. Pode-se espirrar que não há problema. Mas chorar, por exemplo, já é diferente. Quando estavam a fazer o filme Interstellar, iam ter uma cena em que um astronauta chorava e a lágrima caía, quase jorrando do olho. Mas viram o vídeo que eu fiz a chorar na estação e corrigiram [sem gravidade, as lágrimas não ‘descolam’ dos olhos]. Também não se pode arrotar, porque para arrotar o gás tem de estar preso na parte de cima do estômago, enquanto o fundo do estômago está preenchido por algo sólido ou líquido – arrotar é na verdade deixar sair um pouco de gás da parte de cima do estômago. Mas se estamos a flutuar sem peso, o gás, o líquido e o sólido estão todos misturados e por isso se tentar arrotar no espaço vai sempre sair um pouco de vómito. Na realidade, você pode fazer essa experiência: ponha-se de cabeça para baixo e tente arrotar. Não consegue. No espaço pode espirrar – não tem qualquer problema –, mas não pode arrotar.

Pode descrever-me sucintamente como é a Estação Espacial Internacional? Tem janelas e portas, teto e chão como uma casa?

Vista de fora, parece um inseto gigante e complexo, qualquer coisa como uma libelinha. Por dentro faz lembrar um hospital onde não há cima nem baixo. É um aglomerado de módulos, como se fossem seis ou sete autocarros enganchados uns nos outros: alguns estão apontados para cima, outros para baixo, outros de lado. E agora ponha tudo isso debaixo de água. Pode estar num desses autocarros e quando dobra a esquina entra noutro, que pode estar numa direção completamente diferente. Assim que entra, não há uma parte de cima e outra de baixo. Só quatro paredes. Da forma como montámos os painéis no interior, nada é o chão, nada é o teto – e, uma vez que não há gravidade, nem havia motivos para que fosse. Trabalhamos na direção em que o equipamento estiver, e tudo o resto, cima ou baixo, é arbitrário.

O que acontece ao lixo que produzem no espaço?

Na estação 92% da água que consumimos é reciclada, ou seja era urina, suor ou águas residuais. Os resíduos sólidos são muito mais difíceis de reciclar a bordo – ou pelo menos de o fazer higienicamente. Por isso juntamos todos os resíduos sólidos dos mais diferentes tipos. Depois metemo-los nos veículos não tripulados que trazem todos os suprimentos de que precisamos e quando eles regressam à Terra, só com a fricção provocada pela atmosfera com o ar, o lixo queima e transforma-se em poeira, basicamente.

Quando é que a sensação de velocidade é mais forte? Na descolagem ou no regresso, quando a Soyuz mergulha na atmosfera?

Nenhuma dessas situações nos dá uma grande sensação de velocidade. Neste preciso momento você está a deslocar-se a oito mil quilómetros por hora – a Terra está a girar sobre si própria, a cumprir a sua órbita em torno do Sol e o sistema solar está a mover-se através da galáxia – mas você não o sente porque tudo à sua volta está a andar à mesma velocidade. Na nave espacial passa-se o mesmo: tudo vai à mesma velocidade que nós. E não há nada por perto que nos mostre a que velocidade estamos a ir. Temos uma sensação de força, de calor e de energia, mas não de velocidade. Só nos apercebemos da velocidade na estação espacial, quando pegamos numa máquina fotográfica com uma grande lente e olhamos para baixo. Aí percebe que atravessa Portugal, de uma ponta à outra, em menos de um minuto. Atravessa a América do Norte em nove minutos. Estamos a dar a volta ao mundo a 8 quilómetros por segundo e se olharmos para baixo através dessa lente conseguimos ver quão depressa as coisas desfilam debaixo de nós. Ali vejo o canto do Algarve, logo a seguir estou em Lisboa, passo o Porto e tiro fotografias do Porto e já estou na Baía da Biscaia. É tão simples quanto isso. Só aí temos uma sensação de velocidade, não a bordo da nave.

Tem uma maior sensação de velocidade a bordo de um caça, por exemplo?

Sim, porque é uma ‘bolha’. Vemos tudo a passar. Mas das janelas do foguetão, da Soyuz, só se vê o negro do espaço ou o azul do céu. Não tem quaisquer referências para ajuizar a velocidade relativa.

Sei que viu o filme O Náufrago, de Robert Zemeckis. Nesse filme há um momento em que Tom Hanks regressa a casa depois de ter estado desaparecido numa ilha deserta. Os amigos preparam-lhe uma festa e ele acha tudo aquilo fútil e supérfluo. Também teve essa sensação ao regressar do espaço, de que há muitas coisas na nossa sociedade que não precisamos?

Claro. Mas não é preciso ir ao espaço para perceber isso. [risos] Ao longo dos meus 57 anos adquiri uma perspetiva razoável do que é importante na vida. Mas até por isso sei que se as pessoas fossem apenas práticas não teríamos arte, se só se dedicassem àquilo que realmente importa não haveria elegância e alegria na vida. Não somos formigas, somos seres humanos. A vida é imperfeita e confusa e fazemos coisas de que nos arrependemos, mas também fazemos coisas verdadeiramente grandiosas, estimulantes e duradouras.

No seu livro refere a humildade que se sente quando se vê o planeta a partir do espaço. Mas uma vez de regresso à Terra deve ser difícil não ter um certo sentimento de superioridade. Afinal de contas um astronauta tem de ter competências e qualidades e sabe e viu muitas coisas que as outras pessoas não viram nem sabem… No supermercado, no trânsito ou na rua nunca se sente superior ao comum dos mortais?

Isso é uma ratoeira em que não caio. Aprendi há já bastante tempo que qualquer pessoa que encontremos fez coisas que nós não fizemos e sabe coisas que nós não sabemos. Toda a gente. Até se falar com uma criança de três anos, ela sabe coisas que você não sabe, apesar de ser uma novata nas andanças da vida. E quanto mais envelhecem, mais as pessoas sabem. Quase toda a gente já fez qualquer coisa heroica. Mas há quem ache que tem direito de se sentir superior. E uma das formas mais fáceis de se sentir superior é criticar alguém, fazer essa pessoa sentir-se pequena. Fiz coisas que para mim são importantes e tentei fazê-las bem. Mas toda a gente deve resistir à tentação de se sentir superior.

Costuma sonhar que está no espaço?

Às vezes… Mas não me lembro muito dos meus sonhos. Uma vez por outra, quando acordo mais cedo, ou mais depressa, ou alguma coisa me desperta, consigo recordar-me e percebo que sonho com coisas que aconteceram na minha vida, nomeadamente com o tempo que passei no espaço. Mas prefiro perder tempo a pensar no que quero atingir e no significado do que faço quando estou acordado do que a descobrir com que esteve a minha mente ocupada enquanto eu dormia.