Milagre de Trump, ainda incompleto

A colagem dos republicanos à direita extremista está consumada. Mas a consagração de Trump mostrou um partido dividido como nunca. Agora resta a missão de vender o populismo mais à esquerda para vencer a eleição nacional.

Na última edição da convenção republicana, em 2012, o então candidato Mitt Romney foi aplaudido quando lembrou que os EUA são «uma nação de migrantes». Quatro anos depois, a direita norte-americana tem um novo rosto.

E uma nova visão do país: «Cerca de 180 mil migrantes ilegais com cadastro, com ordens para ser deportados deste país, estão esta noite por aí à solta a ameaçar os nossos cidadãos pacíficos. As famílias que cruzaram ilegalmente as fronteiras já excedem o número total de 2015. São largados às dezenas de milhares nas nossas comunidades sem qualquer consideração pela segurança pública», referiu Donald Trump, cerca de treze meses depois de ter surpreendido ao anunciar a sua intenção de participar nas primárias republicanas.

O seu sucesso na eleição interna do Grand Old Party parece até ter surpreendido o próprio. «Quem teria acreditado, quando iniciámos esta jornada a 16 de junho do ano passado, que nós – e digo nós porque somos uma equipa – receberíamos quase 14 milhões de votos, o máximo da história do Partido Republicano», questionou Trump na terceira frase do discurso com que aceitou formalmente o estatuto de candidato presidencial do partido.

Numas primárias que mostraram uns EUA rendidos ao populismo que se vem mostrando na Europa nos últimos anos, Trump encarnou como ninguém a figura de candidato antissistema. Mesmo que esse estatuto o embrulhe numa série de contradições intermináveis: um filho de imigrantes, casado com uma eslovena, que deseja erguer um muro ao longo de mais de 3.100 quilómetros de fronteira; um empresário que ergueu arranha-céus em Nova Iorque à custa de centenas de polacos sem autorização de residência nos EUA; um bilionário de Wall Street, antigo financiador de campanhas democratas – incluindo dos Clintons – que agora caça votos a anunciar que «a elite dos media e os grandes financiadores» apoiam a candidatura da rival.

 

Impossível de unir

E se agora a luta é com os democratas, ao longo do ano Trump travou-a, com a mesma dureza, com um aparelho republicano que tentou impedir até à última este assalto populista e extremista. Os quatro dias de reunião partidária não conseguiram esconder a divisão, especialmente quando o rival que mais tempo resistiu nas primárias, Ted Cruz, se recusou a anunciar o apoio público ao candidato vencedor.

Dois testemunhos recolhidos pela New Yorker no final da convenção dão conta das duas primeiras grandes consequências do fenómeno Trump. 

De um lado, o radiante nacionalista Richard Spencer, um autoproclamado «identitário» que publicou obras a defender a supremacia branca: «Eufórico. Encontrei dezenas de pessoas da Alt-Right», disse o não delegado, que foi ali apenas assistir, em referência ao grupo ‘Direita Alternativa’ – um nome simpático para a extrema-direita. «Temos uma presença e não a tínhamos antes», continuou Spencer.

Do outro lado estão os republicanos tradicionais, como More Dickinson, um apoiante de John Kasich que foi eleito delegado no Estado de Maine: «Não sei o que vou fazer em novembro», desabafou à revista nova-iorquina, referindo-se à recusa em votar em Trump e ao facto de «não conseguir imaginar» ser capaz de votar em Hillary. Nicolle Wallace, colaboradora de George W. Bush na casa Branca, foi mais cáustica: «O Partido Republicano para o qual trabalhei durante duas décadas morreu nesta sala hoje à noite».

 

Vice insuficiente

Extremado e dividido. É assim que os republicanos partem para a missão de recuperar a presidência, oito anos depois da saída de Bush. A escolha de Mike Pence, governador do Indiana mais ligado à direita conservadora e religiosa, foi uma tentativa de acalmar as hostes internas. Mas também é uma figura sem o peso político dos habituais vice-presidentes – e portanto sem a capacidade de reunificação que o partido (e o candidato) tanto necessitam depois de meses de guerra aberta que foram eliminando os nomes mais fortes para o cargo de número 2.

Entre os plágios de Melania Trump (ver B.I.), dos assobios a Ted Cruz e a constante irreverência do próprio candidato – que por norma só sobe ao palco no último dia e desta vez foi figura central ao longo de todo o encontro, incluindo durante o discurso de Cruz -, Pence quase passou despercebido.

Segue-se a parte mais difícil do milagre Trump: levar o seu populismo até ao eleitorado de esquerda. Também aí há uma visível sede entre o eleitorado em apoiar figuras antissistema, como provou a resistência do ‘comunista’ Bernie Sanders durante as primárias democratas. Trump sabe-o e no discurso de vitória referiu várias vezes o senador do Vermont – «já testemunhei como o sistema está viciado, tal como foi viciado contra Bernie Sanders», é um dos exemplos.

No complexo sistema eleitoral norte-americano, as sondagens nacionais não são de fiar – ao ponto das grandes empresas nem sequer as ensaiarem. Mas Nate Silver, o especialista do New York Times em cálculos eleitorais, dá 75% de hipóteses de vitória à candidata democrata.