Noticiar o terror. Entre o dever de informar e o perigo de incentivar

Os sucessivos ataques dos últimos dias têm dominado a agenda noticiosa. Psicólogos forenses explicam ao i que os excessos cometidos nos diretos – televisivos e online – podem provocar um “efeito mimético” em pessoas vulneráveis 

Para a geração de Baptista-Bastos continua a ser o 25 de abril, para as mais jovens é o 11 de setembro – é raro encontrar alguém que não sabe relatar o exato momento em que foi informado de uma das mais impactantes notícias do seu tempo. Ou era. Com o avanço das tecnologias – e a sucessão impensável de notícias monstruosas – é provável que daqui a uns anos ninguém recorde com a mesma precisão a forma ou o meio como recebeu a notícia de um tresloucado a guiar um camião numa alameda repleta de pessoas.

Na era dos smartphones, basta ter ativado alertas de uma das grandes cadeias mundiais de informação – como a CNN, por exemplo – para ser informado de um tiroteio numa discoteca de Orlando exatamente no mesmo segundo em que a informação chega aos habitantes da própria cidade. E se há quem prefira usar a mesma tecnologia para apanhar pokémons imaginários, nas redações de todo o mundo é certo que o alerta vai chegar. A partir daí é a correria para o direto – um género de informação que deixou de ser exclusivo de televisões e rádios através dos sites online em que os jornais se podem atualizar ao minuto.

O grande público, muitas vezes também ‘alertado’ pelo telefone, vai procurar mais informação sobre o tema, conforme o meio que tem disponível. Na sede de informação cometem-se excessos: foram transmitidas imagens de Nice que, horas depois, já eram consideradas violentas demais para serem divulgadas; na última sexta-feira, aí com o ‘apoio’ de um erro das próprias autoridades de Munique, televisões e sites (nós incluídos) passaram horas a acompanhar um suposta caça ao homem que afinal nunca existiu – era só um atirador, e não três, e tinha-se suicidado.

Em Munique, a Polícia local – que apesar de ter alimentado uma informação errada foi louvável na forma como foi informando o mundo, com mensagens escritas não só em alemão mas também inglês, francês e turco – tentou controlar a informação enquanto tentava garantir que mais ninguém era atingido nas ruas da cidade. Por respeito às vítimas e seus familiares, pediu para não serem divulgadas fotos dos mortos e feridos; depois apelou à partilha de vídeos sobre os momentos do tiroteio – mas apenas com as autoridades e não ao mundo, para não aumentar a especulação; por fim, viu-se obrigada a apelar ao fim dos diretos a partir da cidade, sublinhando que as imagens de polícias em cima de terraços e em parques de estacionamento à procura de homens armados poderiam estar a ser vistas por atacantes, que assim saberiam as posições das autoridades.

Em alguns casos os apelos resultaram: na cobertura online da BBC foram retiradas fotografias e vídeos previamente publicados, tendo os leitores recebido a explicação de que tal se devia ao pedido da Polícia de Munique; as televisões também deixaram de filmar agentes em ação, passando horas a cobrir o tema enquanto mostravam uma ambulância a cortar o trânsito numa das ruas da cidade.

Os ataques – e as notícias – sucederam-se quase ininterruptamente nos últimos dias (pelo menos 5 só na segunda e terça-feira). É impossível não perguntar: será que esta cobertura exaustiva de ataques isolados motiva outros potenciais atacantes? “Sabemos que há o dito efeito mimético, as pessoas podem mimetizar determinados comportamentos que observam. Contudo, parece-me redutor explicar só apenas com a exposição a essas imagens”, diz ao i o psicólogo forense Mauro Paulino. 

“A maioria das pessoas vê as notícias e sente compaixão, apreço pelos familiares das vítimas, mas depois existe uma minoria vai tirar partido disso na tentativa de criar o maior terror para os outros”, acrescenta o médico, sublinhando a existência de “vulnerabilidades prévias” nessas pessoas.

“Como vimos nestes últimos casos, todos eles têm história psiquiátrica”, constata o também psicólogo forense Rui Abrunhosa Gonçalves. Ciente que “os meios de comunicação têm que noticiar”, o especialista diz ser importante ter cuidado com a caracterização dos atacantes, pois “pessoas com problemas de saúde mental podem sentir-se galvanizadas pela exposição social”.

“Acho que deveria haver o cuidado da informação e não o cuidado da exploração”, defende Mauro Paulino. “Uma coisa é informar que houve um incidente, do qual resultaram x pessoas feridas ou mortas; outra coisa é explorar de forma massiva e exaustiva, durante horas, com diretos, com imagens de corpos no chão, mesmo que tapados – ou seja, com todas essas imagens que acabam por alimentar essa sede ou essa vontade terrorista”, completa.

“É preciso dizer que estes indivíduos têm que ter já um grau elevado de vulnerabilidade para depois desenvolverem este tipo de ações”, ressalva, lembrando que ninguém se lembrará de mimetizar um ataque destes se não tiver já uma predisposição natural. “Isto afeta alguém que já tenha pensado no assunto. Como no caso dos suicídios, e por isso é que há um certo cuidado em não dar grande alarme quando as pessoas se suicidam, quando se mandam numa ponte nem se costuma referir qual porque se sabe que aqueles que já tinham uma inclinação nesse sentido podem escolher logo essa mesma ponte”, exemplifica Rui Abrunhosa Gonçalves.

Chegou então a hora de os meios de comunicação começarem a trabalhar nestes ataques com os mesmos cuidados com que abordam casos de suicídio? “É possível que se tenha de fazer esta reflexão agora, não se pode descartar. Sobretudo quando se trata de indivíduos solitários, e que se vê que não há nenhuma ideologia por trás”, defende o doutorado em Psicologia do Comportamento Desviante.