Kelmendi: não há coisa Majlinda no Kosovo

A judoca que em 2012 competiu pela Albânia pôde agora participar sob a bandeira do seu país, o Kosovo, que não é reconhecido pelo Brasil. Ficou com o ouro e chorou a primeira conquista do seu país.

O Kosovo nem sequer é reconhecido nos Jogos Olímpicos pelo país anfitrião, o Brasil. O pequeno território, cuja etimologia sérvia quer dizer melro preto, aparece como uma mancha negra no meio de imenso branco que é o silêncio sobre a questão política kosovar. Desde 2008 que o território dos Balcãs é apenas reconhecido como um país independente por cerca de metade dos países-membros da ONU (incluindo Portugal, EUA, Japão, França, Reino Unido e Alemanha), enquanto outra parte quase idêntica, que inclui a Rússia, China, Brasil, Espanha, Angola e Moçambique, não reconhece direitos ao território que o governo sérvio reivindica como parte integral da Sérvia. É no meio desta luta que aparece Majlinda Kelmendi.

Quando a judoca caiu sobre os seus joelhos e as lágrimas começaram a rolar pela sua cara, foi muito mais do que a tensão típica do lutador no final de um combate a soltar-se. Foi um momento de afirmação para os 1,8 milhões de kosovares. Apenas oito anos depois da declaração de independência da Sérvia, o Kosovo já pode reclamar a primeira medalha de ouro olímpica – isso e assistir à sua bandeira a subir ao mais alto da haste, símbolo maior do desporto.

Kelmendi já era a menina de ouro do judo, agora tem uma medalha a condizer. Fez história no Rio de Janeiro. Aos 25 anos, derrotou na final -52 kg a italiana Odette Giuffrida. Era o pódio que faltava à bicampeã mundial e tricampeã europeia desde 2013. Foi a primeira vez que uma atleta do Kosovo pode competir sob a sua bandeira. Foi ela a porta-estandarte na Cerimónia de Abertura, encheu o Maracanã, pequena mas com o peso de uma nação. “Foi enorme”, disse após secar as lágrimas e agarrada ao seu treinador. “Foi enorme não apenas para mim mas para o Kosovo”. A Sérvia deu instruções aos seus atletas para não participarem na cerimónia das medalhas se houver algum kosovar no pódio.

Nascida em 1991 e criada durante a guerra do Kosovo, a judoca subiu a Arena Carioca 2 e desceu do tatami para entrar diretamente na história do desporto e da política. O Kosovo foi aos Jogos do Rio porque viu a sua entrada ser aceite pelo Comité Olímpico Internacional (COI) em 2014 – seguiram-se as federações da FIFA e da UEFA. Foi sob esse contexto que Kelmendi abriu o coração. “Este ouro significa muito para o Kosovo. Não apenas para o desporto, mas também para o país. Sou uma sobrevivente de guerra, assim como o é o meu povo. Várias crianças do Kosovo perderam os seus pais. Muitas crianças não têm livros para ir para uma escola. E eu tornei-me campeã olímpica vinda desse país. Mesmo sem dinheiro, mesmo sem estrutura podemos acreditar em nós mesmos e trabalhar muito duro para conseguir atingir os nossos sonhos”, desabafou a judoca, que representou a Albânia nos Jogos de Londres 2012, mas aí, ainda como albanesa, não conseguiu passar da segunda ronda.

Agora a história mudou. Kelmendi foi arredando as principais rivais da luta pelo ouro. A final apenas a consagrou, ela que era favorita. Agora campeã olímpica, é mais do que nunca uma heroína de Kosovo. “Eu não sei se vou ficar mais famosa e nem quero saber disso, mas o mundo vai respeitar-me muito mais, porque esse é o primeiro ouro do Kosovo, da Albânia ou de quem fala albanês. Eu não quero ficar rica ou famosa, eu luto porque amo lutar e quero encher de orgulho o meu país”, disse Kelmendi, que luta pelas crianças que a tratam como heroína, crianças como ela que tiveram que sobreviver aos horrores da guerra.