Michel Butor. Morreu um “monumento marginal” da literatura francesa

Aos 89 anos, morreu um dos fundadores do movimento literário “Nouveau Roman”

“Navegar de frase em frase, provar o sal nas velas, inspirar o grande vento (…), sentir que se possui asas, adaptar máscaras e papéis (…), planear com o condor escondermo-nos nas ruínas, acariciar os cabelos, arder com todos os heróis, despertar, maravilhar-se…” São versos de Michel Butor, nome maior das letras francesas, e a quem, ao lado de  Alain Robbe-Grillet e Claude Simon, é atribuída uma autêntica revolução na literatura do século XX com a criação do “Nouveau Roman”. Aos 89 anos, morreu na quarta-feira este artista que esteve toda a sua vida do lado da palavra, e que fosse como romancista, poeta ou ensaísta, insistiu sempre na importância de se compreender o fenómeno da narrativa. Para o francês, a centralidade desse modelo ultrapassa o escopo da literatura, sendo um “constituintes essenciais na nossa forma de entender a realidade”. “A partir do momento em que começamos a compreender a linguagem e até à nossa morte, estamos perpetuamente cercados de narrativas; primeiramente no seio familiar, depois na escola, depois nos nossos encontros com outras pessoas e através da leitura”, escreveu num dos seus ensaios.
“Cada palavra escrita é uma vitória contra a morte”. Esta foi uma das frases de Butor mais vezes citada, e deixa claro o seu optimismo quanto ao poder da invenção para revirar as circunstâncias. Depois de ter contribuído para romper com os códigos e estruturas narrativas insuflando no romance de um novo impulso na década de 1950, Butor abandonou este género literário com o seu quarto e último romance (“Degrés”), publicado em 1960. Os três romances anteriores – “Passage de Milan” (1954), “L´Emploi du temps (1956) e sobretudo “La Modification” (1957), cuja narração na segunda pessoa teve muitos seguidores – foram marcos essenciais nesta renovação, sendo o seu contributo reconhecido com o prémio Renaudot 1957, atribuído a “La Modificación”.
Butor conquistou a atenção de todos no meio literário francês, antes dos trinta e aos 34 anos voltou as costas ao género em que se celebrizara para buscar outros caminhos, escrevendo textos que sempre escaparam aos padrões, com livros que no avançar das páginas iam reduzindo o seu público. “Eu estudei Filosofia. Assim, de alguma maneira, há algo dessa aprendizagem que foi transmitido aos meus textos”, disse numa entrevista em 2012. “Creio que ao mundo dos nossos dias falta reflexão. As pessoas deviam pensar mais. Os meus livros exigem um leitor atento, uma vez que neles as coisas só se descobrem aos poucos”. 
Num dos seus ensaios – “A utilidade poética” – escreveu: “A poesia é crítica permanente da linguagem monetária. Só uma poesia sensível ao aspecto económico pode destruir a linguagem económica tal como esta se desenvolve hoje em dia. Trata-se, para o poeta, não de tomar posições políticas aleatórias sobre esta ou aquela questão urgente, mas de transformar a própria língua. Uma nova língua é necessária para se construir uma nova política.”
Mais que um escritor, Butor foi um artista cuja matéria onde buscou um desequilíbrio visionário foram as palavras, a linguagem. “Agito as minhas palavras nos meus parágrafos como um pincel em um pote de pintura”, dizia ele. A sua contínua renovação dos discursos, levou a que tenha feito um percurso inverso à da maioria dos escritores, começando pelo romance, e vindo depois a chegar à poesia, com a sua primeira reunião de poemas publicada em 1970. “Sou um velho romancista e um jovem poeta. A minha escrita mudou porque também eu mudei. Decidi procurar outras formas de falar, uma espécie de poema diferente da poesia habitual”, explicou em entrevista ao jornal venezuelano “El Universal”.
“Figura do Nouveau Roman, ele nunca parou de experimentar várias formas de escrita, muitas vezes em diálogo com outras artes, sempre com o mesmo espírito de liberdade e descoberta”, escreveu o presidente francês, François Hollande, num comunicado em que presta homenagem ao autor que classifica como um “grande explorador da literatura”.
No conjunto da sua obra, estão em maior número as obras de crítica de arte, particularmente sobre pintura. Mas há alguns livros simplesmente inclassificáveis, textos experimentais que cruzam as fronteiras dos géneros literários e que obrigam o leitor a assumir também ele a atitude de um explorador. Grande viajante, o prolixo escritor francês considerava-se um “monumento marginal”, e a exposição que sa Biblioteca Nacional de França consagrou à sua obra, tinha como título “A Escritura Nómade”.
O crítico André Clavel referiu-se a Butor como um criador “niagaresco”, servindo-se do prodígio natural das maiores cataratas do mundo para exaltar uma obra que na sua vastidão captura a cadência de grandes massas de água, num rompante sucessivo de quedas violentas e que ao mesmo tempo se conjugam numa poderosa e bestial harmonia. Na altura da exposição, Butor declarou: “Escrever é destruir barreiras.”
Filho de um ferroviário, Michel Butor nasceu em 1926 em Mons-en-Barœul perto de Lille. Uma família numerosa, com sete filhos, três anos após o nascimento de Michel, os Butor mudaram-se para Paris. Isto permitiu que Michel estudasse filosofia com mestres como Jean Wahl e gaston Bachelard, vindo ele mesmo a seguir-lhes o exemplo, tornando-se professor e indo mundo fora a ensinar francês e literatura. Passou pelo Egipto, Manchester, Atenas e Genebra.
A partir de 1970, além de ensinar e continuar a desenvolver a sua imensa obra de crítica e literatura, manteve colaborações com os artistas Alechinsky, Jiri Kolar, e em seguida Miquel Barceló, o que deu origem a inúmeros livros/objetos de artistas. Mas Butor foi sobretudo um solitário, que procurava conviver com artistas de todos os tempos no diálogo das eras, e foi isso que o levou nos anos 1990 a dedicar três volumes, cerca de mil páginas, à obra de Balzac, num dos estudos mais relevantes que já foram consagrados à obra desse outro prolixo escritor francês, considerado o fundador do realismo na literatura moderna.
Em 2013, recebeu o grande prémio de literatura da Academia francesa. Pai de quatro filhas, paralelamente à sua monumental obra ensaística – cujo trabalho derradeiro foi uma obra publicada há quatro meses consagrada a Victor Hugo na colecção “Os autores da minha vida” (Buchet-Chastel) – Butor deixa mais de duas mil páginas de poesia. Conhecida de poucos, sem grande divulgação fora de França, os seus poemas serão, porventura, o grande legado ao futuro deste autor. Neles encontram-se receitas de culinária, desenhos de aviões e aeroportos, retratos de gente que passa, notas de viagem a terras distantes ou inventadas, um bestiário povoando os confins da imaginação. Há momentos em que os sons das palavras voam do sentido linguístico e alcançam alturas musicais e há ainda páginas de anotações mediúnicas, como se a sua mão houvesse sido tomada à vez pelas de grandes escritores como Melville, William Blake e Ésquilo. “São nuvens e areias deslizando entre os meus lábios (…) São cabelos e chamas que circulam nas minhas veias/ São chamamentos e ressonâncias que me invadem o olfacto/ São promessas de futuras populações que se escoam de corpo em corpo.”