Convenção de Viena: a fazer rir (e chorar) desde 1969

A imunidade diplomática leva a abusos em todo o planeta desde a sua instituição, durante a Guerra Fria 

 “Quebras de imunidade diplomática não são coisa rara”, comenta ao i um embaixador português já reformado. 
A polémica em torno das limitações à imunidade diplomática chegou a Portugal devido à agressão dos filhos do embaixador iraquiano a um jovem de Ponte de Sor. De acordo com fontes do corpo diplomático, o episódio que vitimou Rúben Cavaco não se trata de algo excecional. O i reuniu alguns dos casos mais flagrantes da história desta imunidade, criada em 1969 no direito internacional pela Convenção de Viena.

Em 2010, um enviado do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Qatar acendeu um cachimbo num voo que ia aterrar nos Estados Unidos. Fumar a bordo de uma aeronave representa um crime federal nos EUA. Quando um polícia a bordo lhe perguntou o que estava a fazer, Al Madadi respondeu ironicamente: “A pegar fogo aos sapatos.” Madadi foi detido quando o avião aterrou, mas prontamente invocou a imunidade diplomática. O qatari foi aos Estados Unidos visitar um terrorista preso na Florida. Regressou ao seu país sem qualquer consequência. Não foi sequer revistado.

Loucura no ano de Orwell Em 1984, os serviços secretos israelitas tentaram raptar um nigeriano defensor da Palestina. Umaru Dikko era um exilado político em Inglaterra. O plano consistia em drogá-lo e colocá-lo num contentor marcado com etiqueta diplomática, que impede a autoridade do país hospedeiro de revistar a bagagem de embaixadas. Os israelitas quase tiveram sucesso, não fosse a secretária de Dikko ter testemunhado o momento do rapto e avisado as autoridades. Por um erro burocrático, a etiqueta diplomática não estava no contentor certo e Dikko acabou por ser salvo pela polícia britânica sem violar a Convenção de Viena. O episódio levou a uma crise diplomática, com a equipa de agentes israelitas a ser presa. Durante dois anos, não houve embaixada nigeriana no Reino Unido. 

Nesse mesmo ano, o embaixador da Líbia em Londres abriu fogo contra uma multidão que protestava contra o seu regime. Um polícia foi morto e vários ficaram feridos mas, graças à imunidade diplomática, o embaixador nunca foi condenado e regressou ao seu país. 

Também em 1984, que parece ter sido o ano de maior abuso de imunidade diplomática em Inglaterra, quatro diplomatas iranianos degolaram uma ovelha em plena rua. O ato é punível pela lei britânica, mas os iranianos invocaram, naturalmente, imunidade diplomática.

A cidade de Nova Iorque tinha, em 2011, uma dívida acumulada de 17 milhões de dólares só em multas de estacionamento de consulados. A imunidade diplomática faz com que o corpo diplomático não seja obrigado a pagar as coimas. Em cinco anos, a Federação Russa conseguiu atingir a quantidade de 32 mil multas por pagar em Washignton D.C.

Em 2006, um diplomata senegalês deu asas à criatividade e decidiu abrir um casino à frente do seu consulado, em Singapura. O esquema funcionou durante um mês, no qual Benny Kusni fez meio milhão de dólares diariamente. A polícia acabou por fechar o sítio depois de uma denúncia e Kusni foi preso. O Senegal limitou-se a enviar um novo representante. 

Cremação no quintal A ocorrência talvez mais bizarra sucedeu em 1979, no Sri Lanka. O embaixador da Birmânia naquele país assassinou a mulher após descobrir que esta tinha um caso com um músico. No dia seguinte construiu uma fogueira no jardim da embaixada e cremou a defunta. A polícia ficou à porta do edifício, tendo em conta que, ao abrigo da Convenção de Viena, o local estava fora da sua jurisdição por ser considerado território birmanês. O diplomata continuou em funções após o homicídio devido à imunidade diplomática. 

Há, no entanto, casos em que a imunidade diplomática foi levantada e os criminosos devidamente julgados. Em 1997, um diplomata da República da Geórgia foi condenado a uma pena de sete a 21 anos numa penitenciária norte-americana. Gueorgui Makharadze foi acusado do homicídio involuntário de uma adolescente depois de causar um acidente rodoviário em Washington. O diplomata conduzia embriagado e a alta velocidade. Após cumprir três anos da sua sentença no estado da Carolina do Norte, foi transferido para a Geórgia, onde acabou por ser libertado.