Fernando Guedes, o fundador da Verbo que marcou a cultura do século XX

Se como poeta recebeu os prémios Antero de Quental (1963) e Nacional de Poesia (1968), a verdade é que a sua própria obra literária e atividade enquanto crítico de arte ficaram na sombra do seu contributo enquanto editor. 

Durante décadas a cultura parecia um fenómeno estrangeiro, que ia chegando trazida por aqueles que, fosse por privilégio ou especial afinação, tinham a antena sintonizada sobre frequências que passavam ao lado do país. Fernando Guedes fez parte de uma restrita elite que quis retirar o país de um certo obscurantismo e atraso civilizacional, criando as bases para uma universalização da cultura. O seu contributo foi de tal modo decisivo que, como sublinhou Guilherme d’ Oliveira Martins, «não podemos falar da cultura portuguesa do século XX sem falar dele». 

Valorizando o conhecimento que não busca meramente especializar-se mas que mantém diante de si largos horizontes, foi um estudioso que dividiu a sua atenção por várias áreas do saber, merecendo o epíteto de «príncipe renascentista». Poeta, ensaísta e crítico de arte, fica para a história como «figura tutelar da edição portuguesa», com um percurso que é indissociável da Verbo, editora que fundou, em 1958, e dirigiu durante 50 anos.

Nascido no Porto, em 1929, Fernando Guedes morreu no passado domingo, em Lisboa, aos 87 anos. Desligado do mundo da edição desde que a Verbo foi vendida, em 2009, ao grupo Babel, assistiu com preocupação ao fenómeno da concentração editorial, e numa das entrevistas a Sara Figueiredo Costa – para aquele que viria a ser  o primeiro livro da coleção Protagonistas da Edição, Fernando Guedes: O decano dos editores portugueses, publicado em 2012 – disse que não se tratou de uma explosão no setor do livro, mas «uma implosão que liquidou toda a vida particular e privada de cada editora».

A Editorial Verbo foi possível graças ao apoio de um sócio capitalista, Sebastião Alves, mas foi sob a batuta de Fernando Guedes que foi construído um conjunto de coleções com um impacto transversal na sociedade portuguesa e que fizeram o livro entrar na maioria das casas. 

Nos anos 60, foram publicadas a Enciclopédia Verbo Juvenil e a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, e na década seguinte foram lançados os cem títulos da célebre série Livros RTP, uma iniciativa que teve um estrondoso sucesso, com milhões de exemplares vendidos, e que «de certo modo assinalou o início da era marcelista», como notou Jorge Colaço, que trabalhou com Fernando Guedes ao longo de quase duas décadas.

No campo da literatura infanto-juvenil,  o editor fez duas apostas que expandiram enormemente o imaginário de quase todos os leitores portugueses, trazendo para Portugal os livros da Anita e os álbuns de Tintin. Depois há os livros de culinária de Maria de Lourdes Modesto, que tiveram um impressionante êxito comercial e deram a conhecer aos portugueses os tesouros da sua gastronomia.

Católico e claramente conservador, Fernando Guedes foi antes de tudo um homem empenhado na promoção dos valores culturais, e nesse sentido distinguiu-se como arquiteto de um grande projeto de pedagogia, e sempre com critério estabeleceu um caminho ascensional para que os leitores portugueses pudessem desenvolver as suas faculdades intelectuais. Esteve envolvido em revistas literárias como a Távola Redonda, ao lado de Ruy Cinatti, António Manuel Couto Viana, Alberto Lacerda e David Mourão Ferreira, e Graal, e, em 1959, fundou e dirigiu a revista Tempo Presente, uma das poucas revistas culturais não de esquerda que existiu em Portugal. Apresentando-se como «contracorrente», segundo ele, a revista «serviu fundamentalmente (…) para mostrar que à direita não havia só burros e até se podia fazer oposição ao regime».

Apesar da firmeza das suas posições ideológicas – de que, ao contrário de tantos outros, não abdicou na sequência do 25 de Abril –, teve sempre o respeito dos seus pares, pois soube divulgar a cultura respeitando a sua diversidade. Se até 1974 presidiu a várias direções do Grémio Nacional de Editores e Livreiros, depois foi também presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), do Grupo de Editores de Livros da então Comunidade Económica Europeia, da Federação de Editores Europeus e, a partir de 1992, da União Internacional de Editores, da qual mantinha a presidência honorária.

É reconhecida a importância dos vários livros que dedicou à história da leitura e da edição e comercialização do livro em Portugal. E se, como poeta, recebeu os prémios Antero de Quental (1963) e Nacional de Poesia (1968), a verdade é que a sua própria obra literária e atividade enquanto crítico de arte ficaram na sombra do seu contributo enquanto editor. 

Em 1998, foi agraciado pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, com a ordem do Infante D. Henrique.