Fernando Alvim: “Em Portugal, a inveja é uma instituição”

Vive das suas ideias e possui uma lata desgraçada. Tem ideias sobre tudo e gosta de representar um papel. O Fernando Alvim é mesmo como o Fernando Alvim? Não se sabe. Mas enquanto falávamos, fomos andando e conversando com as pessoas, passámos por um ginásio e o próprio, sempre a mil à hora, resolveu que…

Fernando Alvim: “Em Portugal, a inveja é uma instituição”

A primeira vez que me lembro de o ver foi no “Perfeito Anormal” – grande nome, aliás. Fez alguma coisa antes?

Estreei-me na televisão num Top, da Rádio Comercial, que dava na TVI, estreei-me com Pedro Marques e depois, mais tarde, com Vanda Miranda. Depois, basicamente fui descoberto no “Curto-Circuito”, começo com o Rui Unas e logo com a Rita Mendes, e fiquei anos.

O “Curto-Circuito” foi uma espécie de fábrica de talentos?

E ainda é. As pessoas sempre foram muito críticas em relação aos “Morangos com Açúcar”, eu não. Acho que programas como o “Curto-Circuito” e os “Morangos com Açúcar” são plataformas em que as pessoas podem experimentar e ser medíocres. É possível ser medíocre nos “Morangos com Açúcar”, estás a começar, não precisas de ser bom.

Outra coisa de que acusam os “Morangos com Açúcar” é ter formatado os atores para um determinado tipo físico, o que explica provavelmente a sua ascensão.

Claro. Há uma coisa muito importante que a minha entrada na televisão significou. A partir do momento em que cheguei à televisão, qualquer pessoa olhou para o ecrã e pensou: “Se este gajo está, qualquer um pode lá estar.”

Tem essa ideia tão negativa si? É sempre tão autocrítico? 

Sim, tenho essa capacidade. Não me levo a sério, gosto disso. E honestamente não acredito em pessoas que se levem demasiado a sério. 

Mas não gosta que pensem que é burro.

Acho que as pessoas não olham para mim dessa forma. Já conquistei isso. A dada altura, justamente na fase do “Curto- -Circuito”, eu era só “o ganda maluco”. Uma das coisas mais incríveis que me aconteceram, nesse período, foi uma vez eu estar no Lux e passar Francisco Louçã, que eu não conhecia pessoalmente, e diz-me: “Ganda maluco.” E eu pensei, “que é isto, pá?”. Lembro-me de ter ido atrás dele e cravei-lhe uma entrevista. Foi uma entrevista maravilhosa em casa dele, para o “Perfeito Anormal”. Uma das coisas curiosas é que não tenho noção da minha popularidade. Nunca apreendi essa coisa de ser um tipo mediático. Nunca entrou bem na minha cabeça.

Não está permanentemente a representar para um público imaginário?

Não. Nada mesmo.

Essa conversa que teve com a empregada por causa das azeitonas é mesmo o Alvim [a entrevista foi feita durante um almoço]?

Sim, sou eu. Gosto de ser assim. Tenho de ser assim. 

A sua vida dá-lhe desculpa para ser assim?

Um entertainer não tem as limitações que tem, por exemplo, um jogador de futebol ou um político. Eu posso perfeitamente apanhar uma bebedeira numa discoteca sem que isso possa ser prejudicial para a minha carreira. Posso estar nos copos. Um político não pode estar com os copos; um jogador de futebol, é impensável. A vida permitiu-me agir e dizer aquilo que penso. Obviamente, há uma linha finíssima: nunca podes dizer tudo aquilo que pensas. No meu caso, como não defendo nada de tão transgressor, não há muitas coisas que fiquem por dizer. 

Voltando à sua história, o “Curto-Circuito” surge como?

Sou convidado pela Sigma 3, que ainda é a produtora do programa. É nesse momento que a minha vida muda completamente. O “Top Rock” era um programa muito formatado e eu não podia ser muito natural. A partir do momento em que me dão a possibilidade de ser espontâneo, tudo se transformou.

O programa era um eterno direto.

Eram três horas. Havia situações em que nós chegávamos ao estúdio e perguntávamos: “Como é que vai ser o programa?” “Falem e estejam à vontade”, respondiam-nos. E eram três horas de televisão. Havia um tema e nós, a partir daí, trabalhávamos em direto. Pode parecer fácil, mas não é nada fácil. 

Há um célebre apanhado da RTP que ilustra bem os problemas do direto, salvo erro com “O Ponto por Ponto” de Raul Durão, em que ele pergunta: “Senhor engenheiro, especialista em geologia, o que pensa da possibilidade de haver um tremor de terra em Lisboa?”, a que o homem lhe responde, “eu não me chamo fulano, sou sicrano, e não sou especialista em tremores de terra”. E o Raul Durão, imperturbável, contrapõe: “E senhor sicrano, como cidadão, qual é a sua opinião?” (risos)

Isso é muito bom. Isso aconteceu no outro dia com um tipo na TVI, e a gente considerou-o “Um dos Monstros do Ano” [Alvim organiza uma cerimónia anual em que entrega prémios por categorias às pessoas que protagonizam os momentos mais hilários e estranhos em televisão]. Numa das categorias ganhou “um convidado trocado”, um tipo que foi a um programa da TVI e pediram-lhe para falar da artrite reumatoide, salvo erro, e o homem era oftalmologista e disse em direto: “Há um engano, eu vim falar de…” Eu telefonei-lhe para dizer que ele tinha sido nomeado para “Os Monstros do Ano”, o gajo saía em grande, e pôs-se logo a falar de advogados e não sei o quê… há uma falta de sentido de humor absoluto. O que me leva a acrescentar que, para além das pessoas que se levam muito a sério, não acredito em gente que não tem sentido de humor.

Depois do “Curto-Circuito”, como surgiu “O Perfeito Anormal”?

Eu tive a ideia do “O Perfeito Anormal”, o programa era meu.

O Nuno Markl e o João Macdonald também lá estavam?

Sim, eu convidei para este programa o Markl, e para a rubrica de humor “descobri” o Ricardo Araújo Pereira e o José Diogo Quintela. O Markl tinha trazido uma cassete de VHS com o espetáculo do Ricardo e do José Diogo no CCB [Centro Cultural de Belém], e eu vi e não tive a menor dúvida de que eram eles os indicados para aquele segmento do programa.

Mas eles já iam ao CCB e eram desconhecidos?

Sim, nunca tinham feito televisão. Eu olhei para aquilo e tive a sensação de que eles eram enormes, como aliás se verificou rapidamente. Percebi desde logo que cada vez que eles entravam havia uma reação muito boa do público. No terceiro programa, sobre o magnífico tema “A minha vida dava um filme indiano”, dá-se um salto. Em todo o lado onde eu ia, as pessoas começavam a falar deles.

Mantém relações de amizade com eles?

Sim, somos amigos. Eles são ótimos. Acho que o melhor que lhes podia acontecer agora era eles fazerem justamente o que o “Porta dos Fundos” fez, que era irem para a net. Era maravilhoso.
Não acha que a certa altura no grupo havia um solista demasiado evidente?
Sim, mas fazem sentido como equipa. É como uma banda em que o vocalista acaba por ter mais protagonismo. Mas também como uma banda, ela não seria genial sem o resto dos elementos. Acontece sempre isso num grupo. Os Monty Python também tinham o John Cleese e não era por isso que deixavam de ser fantásticos.

O “Perfeito Anormal” durou muito tempo?

Para aí um ano, mas deu-me muito gozo fazer. Era o primeiro programa em que eu era autor. O “Perfeito Anormal” deu-me essa independência que eu busco sempre. A partir daí comecei a criar conteúdos e a concretizar ideias minhas. Comecei a ficar conhecido pelas ideias que tenho. 

Essas ideias, muitas delas não ficam pelo caminho? A revista “365” vai saindo, mas o canal de televisão na Costa da Caparica não foi ao ar?

Isso é como todas as pessoas que têm muitas ideias. Há ainda a mentalidade em Portugal que, se tivermos uma ideia e falharmos, isso é o fim do mundo, mas qual é o problema? Foi só uma ideia, há muitas outras que podem resultar. É como aquela história do treinador de futebol que não é bom porque perdeu um campeonato. Qual é o problema? O gajo perdeu ali, com aquela equipa, naquelas circunstâncias concretas, mas pode vir a ganhar na equipa ao lado. Acho que as pessoas ainda têm muito medo de falhar e de arriscar. E há ainda uma outra coisa que me parece evidente: a inveja. Embora esteja convicto de que estamos a criar a primeira fornada de portugueses que não são invejosos, depois de gerações e gerações de invejas e invejosos.

Porque diz isso?

Sinto que há uma outra união, e um sentimento de maior cooperação entre todos. A crise ajudou a desbloquear isso, as pessoas começaram a entender, na prática, que trabalharem juntas é melhor que invejar o que os outros fazem.

Acha que a inveja é uma característica nacional?

Em Portugal, a inveja é uma instituição. As pessoas não conseguem deixar de ter ciúmes das outras pessoas, em vez de vibrarem com isso e pensarem: “Que bom, vou conseguir ser igual ou melhor que essa pessoa.” Só assim se compreende que haja tanta gente que não goste do Cristiano Ronaldo. Como é possível que alguém em Portugal possa não gostar dele? Não consigo compreender.

Não é possível, por exemplo, distinguir os planos profissionais e da simpatia? Pode dizer-se que o Mourinho é um excelente treinador, sem ter de achar que ele é a miss simpatia.

Isso é possível, mas há pessoas que não têm qualquer capacidade de sentir admiração pelas qualidades das outras e que transferem esse sentimento para a inveja. Eu não consigo entender isso. Acho que a inveja está no ADN dos portugueses. Se olhar para a sociedade americana, eles não têm esta inveja.

Mas como é que sabe?

Dá-se sempre o mesmo exemplo: se alguém vê um Ferrari em Portugal, diz logo, “aquilo é dinheiro da droga ou negócio de armas”, e na sociedade americana, as pessoas pensam: “Um dia ainda vou ter um Ferrari daqueles.”

E provavelmente nunca terão. Não se pode dizer, como fazia notar o prof. Cavaco quando era primeiro-ministro, na altura da crise do Vale do Ave, que havia empresários que tinham Ferraris apesar de terem as empresas falidas?

Eu não tenho nada contra as pessoas que são ricas.

E se forem precisos muitos pobres para as fabricarem?

Não tenho nada contra os ricos se tiverem gerado essa riqueza de forma honesta. Também acredito que há pobres que podem ser desonestos.

Para além do Pai Natal e do Ricardo Salgado, estamos a falar de quem?

Eu fiquei muito surpreendido por o Ricardo Salgado ter sido apanhado nos Panama Papers (risos). Agora estou a gozar, mas é verdade que sou o único português que acredita que a Maddie foi raptada, ao contrário da tese que culpa a família. 

Porquê?

Eu acredito e tenho a forma de a encontrar: colocar uns bons médiuns ingleses a tentar falar com a Maddie. Se ela responder, é porque está morta; se não responder, é porque está viva, e nesse caso é perguntar-lhe onde está e colocar a polícia à procura dela. É a minha ideia para encontrar a Maddie.

Dá-me ideia que o Fernando Alvim se foi embora e ficou apenas a personagem…

Quero acrescentar seriedade à nossa conversa. Entrevistei a Cicciolina um mês depois do desaparecimento da Maddie, para o meu programa “Prova Oral”, e ela disse-me que não falava de duas coisas: política e sexo. E eu, desesperado: “Não fala sobre sexo?” “Não, quero falar sobre a Maddie”, retorquiu ela. E cada vez que eu tentava fazer uma pergunta de caráter mais sexual, ela respondia-me invariavelmente: “Vamos falar sobre a Maddie.”

O programa seguinte foi o antigo inspetor da Polícia Judiciária Gonçalo Amaral a falar sobre sexo?

Eu sou o único português que acredita que ela foi raptada. [Entretanto mete conversa com o dono do restaurante e descobre que guarda a mota na mesma garagem onde ele guarda o carro.]

Acha que é uma característica nacional, tal como a inveja, os portugueses não acreditarem que a Maddie tenha sido raptada?

Não sei se está no ADN, mas se é verdade que todas as pessoas, menos eu, chegaram a essa conclusão? É.

O que faz de si uma exceção nacional?

Não sei. Acredito que se perdeu demasiado tempo a culpar os pais da Maddie e, possivelmente, os raptores estavam em fuga com a criança. Um amigo meu tem uma tese que isto, para ser perfeito, um minuto antes de morrer, havia uma voz que dizia “o que quer saber”? E tinha direito a três perguntas.

O que perguntava?

Eu perguntava logo onde estava a Maddie, adorava saber.

E as outras duas perguntas?

Hummmmm, não sei. A da Maddie; se há vida no universo, vida mesmo, não é água e que mais…

Nada de religioso, já dá por adquirido que não há Deus?

Dou por adquirido que não; no entanto a minha relação com a fé… Houve uma altura em que eu tinha duas frases na minha vida. Uma era muito boa para relacionamentos: se não te acompanham, é porque te estão a atrasar. É muito boa, digo sempre isto às minhas amigas quando estão com problemas, “olha, se não te acompanham, é porque te estão a atrasar”. Mas depois cheguei à conclusão de que a frase da minha vida, que mais tem que ver com a minha personalidade, é: fia-te na Virgem e não corras. Se estiver no Terreiro do Paço e, de repente, aparecer um tsunami, a probabilidade de uma pessoa pegar numa mota, fugir e safar-se é muito baixa, mas é infinitamente superior à probabilidade de se safar ficando lá a rezar à Virgem. Tenho a absoluta certeza daquilo que estou a dizer. 

Depois da Maddie e da vida no universo, falta uma terceira pergunta.

Hummmmm. Será que o Dr. Phil nunca foi infiel à mulher? É esta a minha pergunta final. 

Quando começou a fazer a revista “365”?

Foi em 1996, quando comecei a fazer um festival no Porto, onde eu vivia, que se chamava Termómetro, e que ainda dura até aos dias de hoje.

Viveu no Porto até que idade?

Eu nasci em Mafamude e vivi no Porto até bastante tarde. A minha vida muda radicalmente quando, com 24 anos, decidi vir viver para Lisboa. Porque estava na TSF e tive uma proposta para vir para a Rádio Comercial, e assim fiz.

Na TSF fazia informação?

Não, era copywriter: fazia os anúncios e dava a voz. E fui convidado para me “transferir” para a Comercial. Aí fiz durante muitos anos a emissão da manhã, das tantas da manhã até às duas da tarde, mas também fiz a emissão ao fim de semana. Foram tempos incríveis de experiências e descoberta. A rádio é o meio a quem mais devo: foi na rádio que experimentei as primeiras ideias. A rádio tem essa enorme vantagem: é o meio mais fácil para executar ideias. Na televisão, tudo é mais difícil e mais caro; na rádio, tudo é mais fácil e mais barato de tentar. 

Consegue viver de criar ideias?

Vou-me aguentando. Até porque as ideias não pararam, tenho cada vez mais ideias. Mas aquilo que é a minha base de subsistência é passar música, sou um “mete-discos” profissional. E isso dá-me possibilidade financeira para eu estoirar esse rendimento em iniciativas várias que faço. Muitas delas são intervenções pontuais e artísticas.

Há uma personalidade Alvim para meter discos?

Sou sempre eu. Aquilo que eu vendo é a minha personalidade, é uma sonoridade festiva. Tento interagir com as pessoas e sobretudo desconstruir musicalmente as coisas: tanto estou a passar Chemical Brothers como o “Maravilhoso Coração” do Marco Paulo, e isso é que permite criar um ambiente festivo. As pessoas percebem que estou a brincar e isso cria um ambiente diferente. Se fosse passar só música de que gosto, seria mais um DJ, e, goste-se ou não, as pessoas não procuram só isso em mim. Esperam que eu seja um “mete-discos” anormal. Mas a minha relação com a música é mais do que um ganha-pão. A música é fundamental e é o garante da minha estabilidade. Mas quando meto discos, o que passo não são apenas as minhas preferências musicais (Jeff Buckley, David Bowie, Chemical Brothers, etc…). E acho sinceramente que Portugal passa por uma das fases mais criativas a esse respeito. Destaco dois casos: o Samuel Úria, que eu venero, e, ultimamente, os trabalhos dos Capitão Fausto.

E o que quer ser quando for grande?

Costumo dizer que quero ser o novo Júlio Isidro e, de repente, eu próprio apresento um programa com o Júlio Isidro na RTP Memória. A razão é simples: o Júlio Isidro é a pessoa que, até agora, mais talentos descobriu em Portugal. Eu ambiciono isso, é isso que mais prazer me dá: descobrir novas pessoas com talento. Quando faço isso, é como se recebesse uma transfusão sanguínea e ficasse mais jovem.

Está a falar da sua vida pessoal?

Nada disso. Eu gosto de mulheres mais velhas (risos).

Novos projetos?

Vou ter um novo programa na RTP que se vai chamar “O Avô Saiu de Casa”, que é um concurso entre várias regiões do país, com pessoas de mais de 60 anos. A ideia é diverti-las e serve para mostrar quão geniais e, às vezes, subaproveitadas são as pessoas de idade neste país. É um concurso que eu inventei que acho que vai ser muito divertido.

Tem algum avô de Boliqueime?

Não, mas espero que Cavaco possa inscrever-se, agora que tem mais tempo para coisas lúdicas como estas. E outro programa que vou ter é a “Brigada da Internet” na Antena 3 e no Canal Q, que é um programa de debate sobre a semana que passa na internet.