A força de uma ideia

Ainda tenho as imagens frescas na retina. A Marisa a entoar os versos de José Afonso «Olha o Sol que vai nascendo…», a descer do palco e a vir cantar até ao pé de mim. Foi uma festa retumbante, na antiga Central Tejo, hoje Museu da Eletricidade, em Belém.

O país inteiro queria lá estar. Pelo recinto passaram mais de 2 mil pessoas naquela noite. Olhando para trás, eu era o centro da festa, pois era o diretor do jornal que ali se lançava. Mas nem nessa altura me senti importante. O importante era o sucesso do futuro jornal, que por aquela prova de força se adivinhava radioso.

Toda esta enorme expectativa fora criada por nós, grupo fundador, ao lançarmos o desafio ao Expresso, donde provínhamos: eu, o José António Lima, o Mário Ramires, o Vítor Rainho e a Ana Paula Azevedo. O Expresso nunca fora desafiado com tamanho vigor, e tinha medo: anunciara uma descida do preço de capa e a distribuição gratuita de uma série de DVD de conhecidos filmes. O grande Expresso tremia.

O lançamento do 1.º número do SOL também foi um tremendo êxito: os 170 mil exemplares voaram das bancas, vendendo-se em poucas horas. Muitos milhares de leitores não conseguiram o jornal. Eu estava plenamente convencido de que nos iríamos impor rapidamente como o grande semanário português. Conhecia o Expresso como as minhas mãos e sabia que iríamos ser melhores: porque trouxéramos connosco muitos dos melhores jornalistas e porque o projeto jornalístico era superior. Além disso, tínhamos como acionista o BCP, o maior banco privado português, pelo que o dinheiro nunca seria problema.

O melhor projeto, a melhor redação, o melhor acionista: estavam reunidas todas as condições de sucesso.

O 2.º número voltou a esgotar-se nas bancas, e uma garrafa de champagne que eu tinha comprado para celebrar a chegada aos 100 mil exemplares de tiragem não foi aberta: essa fasquia estava ultrapassada desde a partida.

As nossas manchetes começaram a marcar, semana após semana. Foram elas que inviabilizaram o aeroporto na Ota. Fomos ainda nós que anunciámos a mudança do projeto para Alcochete. Fomos nós que demos as primeiras notícias sobre as luvas na compra dos submarinos e o envolvimento do CDS. Seríamos mais tarde nós a lançar o caso Freeport, depois o Face Oculta, o Monte Branco… O SOL liderava claramente a investigação jornalística.

Tínhamos também um punhado de colunistas de primeira linha. Para além dos fundadores (eu, o Lima e o Ramires tínhamos colunas políticas, o Vítor Rainho assinava uma carismática coluna sobre a noite), havia o Marcelo Rebelo de Sousa, o António Pedro Vasconcelos, o Paulo Portas, o Miguel Portas, a Margarida Marante, a Margarida Rebelo Pinto, o Miguel Frasquilho, o António Costa, etc., e jornalistas celebrados como a Felícia Cabrita. E lançámos rubricas originalíssimas como as Conversas na Prisão, as Entrevistas Imprevistas ou o Ateliê do Artista.

Quando as nossas manchetes começaram a fazer tremer Sócrates, até então em estado de graça, recebemos ameaças. E aí começou um período simultaneamente glorioso e negro. Glorioso jornalisticamente. Sentíamo-nos na crista da onda. Mas iríamos ser vítimas de pressões políticas nunca vistas.

 

O começo retumbante dava lugar a todas as dúvidas. O BCP, o banco ‘inexpugnável’ que era nosso acionista, começou a estremecer com as guerras intestinas. O país começou igualmente a meter água – e pouco mais de um ano depois do nosso nascimento, em 2008, estalou uma crise financeira sem precedentes. E, como se isto não bastasse, o poder político começou a mover-nos uma guerra sem quartel.

Sentíamos o mundo desabar à nossa volta. Paulo Teixeira Pinto decidiu sair do SOL e abrir as portas do jornal à Cofina. Armando Vara e Santos Ferreira, quando chegaram ao BCP, reduziram drasticamente o investimento publicitário no SOL e disseram que não punham lá nem mais um tostão. A venda de jornais e o investimento publicitário caíram subitamente em consequência da crise.

Foram tempos em que nos sentimos rodeados de feras. Sempre fôramos um pouco outsiders, pois não frequentávamos as tertúlias jornalísticas e éramos vistos como estranhos no mundo corporativo. Mas agora todos se afastavam de nós, como se tivéssemos peste.

O entusiasmo inicial dava lugar à preocupação. E esta degenerava em angústia. Não cedemos às chantagens políticas e publicámos semana após semana os escândalos em que o nome de Sócrates aparecia envolvido. Mas estávamos financeiramente estrangulados. A Cofina saiu e os outros acionistas decidiram abandonar o barco.

Foi nesta altura que um grupo de empresários angolanos, onde se distinguia a família Madaleno, decidiu apostar no jornal. Ainda houve uma tentativa do BCP para nos tramar. E Sócrates – que continuava a ser o primeiro-ministro – desenvolveu esforços para demover os angolanos. Mas o negócio foi mesmo avante.

Foi um tremendo alívio. Já sentíamos a corda na garganta. Nessa altura, Cavaco Silva, o Presidente da República, chamou-me a Belém para me dizer: «Não desista, em nome do pluralismo da informação». Sentia-se que o SOL era um bastião de liberdade.

Olhando para trás, para tudo o que passámos – angústias, perseguições, traições, rasteiras, patifarias, chantagens, sem sabermos se haveria jornal na semana seguinte –, o que manteve o SOL vivo?

Sem dúvida, a força da equipa fundadora e a força do projeto jornalístico. Tudo o mais falhou: o BCP, que parecia um colosso financeiro, entrou em colapso, os outros acionistas desertaram, o mercado publicitário nunca correspondeu ao nosso projeto (sendo pressionado nesse sentido), as vendas contraíram-se por força da crise, os nossos adversários moveram-nos uma luta desigual (que chegou às ameaças aos fornecedores e anunciantes).

O SOL chegou aqui, aos 10 anos, pela força da ideia que o fez nascer. Bate-se hoje com jornais antigos e de raízes muito mais fundas na sociedade. E se tudo se tivesse mantido, se ainda tivéssemos connosco o maior banco português, se tivéssemos conservado a estabilidade acionista, como era suposto, se a crise não nos tivesse roubado receitas, enfim, se não tivéssemos tido que enfrentar uma conjuntura tão adversa no mercado jornalístico e no próprio país, seríamos hoje o maior e mais influente semanário português.

Ninguém tenha dúvidas: qualquer outro jornal teria soçobrado perante as terríveis dificuldades que tivemos de enfrentar. Se tivéssemos tido o vento de feição, hoje seríamos líderes. O SOL nasceu para liderar – e só uma conjugação de fatores tremendamente adversos impediu que isso acontecesse. Ainda assim, semana após semana, sentimos que somos uma força, que influenciamos a sociedade, que temos a marca da qualidade, ainda que não tenhamos a da quantidade.

O SOL continua a brilhar, iluminando mesmo os que teimam em tapá-lo com uma peneira.