Um Diário de Preces. As voltas que Deus (nos) dá

Flannery O’Connor regressa através de Isabel Abreu numa espécie de oratória encenada por Miguel Loureiro que se estreia hoje no CCB

O cheiro é intenso, a cebolas e batatas, uma galinha morta por depenar, mais um coelho já sem pele e o resto que não sabemos porque são demasiadas coisas sobre esta bancada de madeira que ainda mal vemos, mas que sentimos logo que entramos na sala onde há de se juntar Isabel Abreu para nos trazer Flannery O’Connor, através dos textos que escreveu entre 1946 e 1947, num diário descoberto recentemente, 50 anos após a morte da escritora do sul dos EUA.

Diário espiritual, diálogo com Deus, ou monólogo sobre Deus e a fé e o céu e o inferno. Oração, confissão. O’Connor inquietada com a fé, a sua, com o que é Deus, porquê Deus, ou como acreditar em Deus, O’Connor a acreditar no inferno mas a preferir acreditar no céu. Diário que Miguel Loureiro leu quando foi descoberto e publicado, há apenas dois anos, com o título “Um Diário de Preces” (Relógio d’Água, 2014), e com que desafiou a atriz Isabel Abreu para este espetáculo que podia ser “uma oratória, um recital onde se dariam a ouvir as folhas do diário da Flannery O’Connor”.

Não é, por isso, Flannery O’Connor que vemos em “Um Diário de Preces”, ou não é exatamente Flannery O’Connor que Isabel Abreu pretende ser. “Não queremos fazer uma biografia sobre a Flannery O’Connor”, esclarece Miguel Loureiro, encenador de “Um Diário de Preces”, que pode ser visto até domingo na Sala de Ensaio do Centro Cultural de Belém, para concluir: “Isto até é mais um estudo sobre a Isabel, no sentido em que tudo o que está aqui é uma leitura que a Isabel faz dela.”

E isto também não parece um diário, como os textos não eram necessariamente, são momentos. “Há muitas pausas que ela faz para trazer pequenos objetos ou pequenos gestos do quotidiano.” Tarefas domésticas que também não são mais do que a criação de um imaginário ficcional, explica o encenador. “Sabemos que ela escrevia e que criava pavões, ela não é muito prolixa na sua intimidade, e se calhar também isso não interessa porque também não é isso que se passa aqui.” O que se passa é antes uma apropriação de palavras, de páginas de um diário. “Aqui ficamos a conhecer a Isabel e um eco, um reflexo da Flannery também, através da Isabel.”

Duas pessoas aparentemente distantes em tempos e universos aparentemente distantes. “Isto aqui, este diário, é uma conversa da Flannery O’Connor com Deus muito novinha, com 20 anos, não nos podemos esquecer disso. E são momentos de uma grande intimidade, e essa intimidade é algo que ninguém conhece”, diz Isabel Abreu, que em “Um Diário de Preces” se propôs “aprender” as palavras da escritora americana, apoderar-se delas e levá–las até si. “Para que isto seja uma experiência de confissão com as palavras da Flannery passando por mim. Não sou eu possuída pelo espírito dela. Sou eu, Isabel, com a minha experiência e as minhas inquietações, que me ponho ao serviço para que por mim passem as palavras dela e para que cheguem às pessoas com o espírito das duas.”

Dois universos distantes, dizíamos, mas se calhar não tanto. “Fui batizada, não sou praticante, mas sinto-me cada vez mais próxima de Deus e destas palavras”, diz a atriz que dá voz ao diário da autora norte-americana. “Não me são indiferentes e não me é difícil perceber aquilo de que ela fala, porque acho que, embora ela fosse católica, isto é uma coisa muito mais universal que pode até fazer-nos refletir sobre a fé, sobre o que é acreditar em algo. Acho que mesmo que não acredites no inferno, existe uma consciência de que ele existe, mesmo que não o afirmes. Existe um medo que é transversal a todos.”