Óbito: Shimon Peres, o mal-amado

Perdeu quase todas as eleições em que entrou. Mas, no dia da sua morte, o último dos pais fundadores de Israel torna-se a imagem da paz e consenso que o seu país nunca encontrou.

Shimon Peres nunca foi amado pelos israelitas. Não fazia parte do imaginário do sabra moreno, o novo homem judeu nascido em territórios palestinianos, guerreiro, aventureiro e pronto para a guerra sempre que vizinhos árabes punham em risco a existência do seu país. Vestia-se com fato e gravata quando os seus pares passeavam em fardas do exército. Mesmo as suas maiores vitórias foram atribuídas a outros políticos. Ocupou todos os grandes cargos de poder, mas perdeu quase todas as eleições em que entrou.

Peres morreu esta quarta-feira, aos 93 anos, como um político mal-amado, o último dos pais fundadores de Israel. Morre também um dos últimos – senão mesmo o último – símbolo da busca por um consenso nacional que a polarização israelita de hoje faz parecer impossível. E morre como um incansável defensor da paz duradoura que já todos parecem ter desistido de encontrar. Shimon Peres ficará como o símbolo de outra era. “Sou filho da geração que perdeu um mundo e construiu outro”, escreveu.

Shimon Peres nasceu Szimon Perski, em 1923, na Polónia. Emigrou com os seus pais para a Palestina, em 1932. À chegada mudou o seu nome para algo próximo do hebraico, mas nunca se livrou da pronúncia polaca. A sua primeira vida política viveu-a como ativista do movimento trabalhista, aproximando-se do grande pai fundador, David Bem-Gurion, que o levou para o importante Ministério da Defesa, no período da guerra árabe-israelita de 1948. Shimon Peres não combateu, mas chegou a diretor-geral do ministério.

Estes são os anos das suas heranças políticas mais duradouras. Shimon Peres não só construiu as bases da atual doutrina israelita de defesa: conduziu também em simultâneo uma espécie de Ministério dos Negócios Estrangeiros paralelo. Foi ele quem conseguiu convencer a França a dar a plataforma de lançamento para o arsenal nuclear que Israel ainda hoje nega ter. Shimon Peres quase o admitiu no ano passado, dizendo ao “New York Times” que conseguiu fazer com que os árabes se apercebessem que o estado judeu não seria destruído.

Chegou a deputado, vice-ministro e, mais tarde, ministro da Integração dos Imigrantes em 1969, um posto importante no período de ocupação dos territórios palestinianos. Passa por vários postos governamentais, incluindo o inevitável cargo de ministro israelita da Defesa. Quando Yitzhak Rabin se demite do cargo de primeiro-ministro, em 1977, Shimon Peres chega enfim a líder dos trabalhistas e, como tal, chefe de governo. Mas fê-lo no momento em que a esquerda israelita perdia para a direita conservadora e religiosa o monopólio do poder.

Ninguém perdeu mais eleições em Israel do que Shimon Peres e poucos foram primeiro-ministro por períodos tão breves. Passa alguns meses na frente do governo em 1977, mas perde as eleições desse ano. Chega ao poder novamente em 1984, mas com uma vitória trabalhista tão tangencial que tem de negociar uma coligação com os rivais do Likud, que o obrigam a uma chefia rotativa do governo. Em 1995, quando Rabin é assassinado por um ativista de extrema-direita, Shimon Peres passa mais alguns meses como primeiro-ministro, mas perde as eleições do ano seguinte para um principiante Benjamin Netanyahu, o atual primeiro-ministro.

Shimon Peres perde para um político ambíguo e oportunista, odiado pelos palestinianos, apenas dois anos depois de assinados os Acordos de Oslo, que fizeram o mundo acreditar por breves momentos que seria possível o fim do conflito israelo-palestiniano. A derrota dá-se também um ano depois de Shimon Peres, com Rabin e Yasser Arafat, receber o Prémio Nobel da Paz, que mais tarde desvaloriza. A paz não aconteceu, mas Shimon Peres não deixou de a tentar, mesmo quando se apercebeu de que ninguém estava disposto a arriscar tanto como ele, Arafat e Rabin.

“Não havia alternativa. Tínhamos de o fazer”, disse Shimon Peres ao “New York Times”. “Perguntaram a um filósofo grego da antiguidade qual era a diferença entre a guerra e a paz. ‘Na guerra’, respondeu, ‘os velhos enterram os novos. Em paz, os novos enterram os velhos.’ Senti que se conseguisse construir um mundo melhor para os novos, isso seria a melhor coisa que faria.”

Mesmo quando ocupava o cargo sobretudo simbólico da presidência de Israel, Shimon Peres tentou contornar Netanyahu e os partidos e criar canais paralelos de diálogo com as Autoridade Palestiniana. Sabia que não conseguia contornar o poder do primeiro-ministro e, sobretudo, da psique israelita, que só abriu uma exceção para os acordos de Oslo porque Rabin – e não Peres, que os negociou – ocupava então o cargo de primeiro-ministro. Mesmo assim não o deixou de tentar.

Shimon Peres morreu também mal-amado pelos palestinianos. A Autoridade Palestiniana, que ajudou a criar com os Acordos de Oslo, não disse muito esta quarta-feira: apenas que enviou uma carta de condolências à sua família, na qual o descreve como “parceiro na corajosa paz” de 1993. O Hamas, por seu lado, celebrou a sua morte. “Shimon Peres era um dos últimos fundadores da ocupação israelita. A sua morte marca o fim de uma era da ocupação”.