Primeiro amor

Afelicidade parece rara porque não faz notícia. O casamento de Meryl Streep com o escultor Don Gummer, de quem tem 4 filhos, dura há 38 anos. 

Em 2013, ao ganhar o seu terceiro Óscar, Streep começou assim o discurso: «Em primeiro lugar gostaria de agradecer a Don, porque quando se agradece ao marido no final do discurso eles aumentam o volume da música, e eu faço questão de que ele saiba de que tudo o que eu valorizo nas nossas vidas foi ele que me deu».

Antes deste casamento, a atriz tivera uma relação de 3 anos com um ator, que terminou com a morte dele, de cancro, tinha ela 29 anos. 

Além disso, levara com uma série de portas na cara, e ouvira da boca de Dino De Laurentiis, que não sabia que Meryl tinha estudado italiano, estas lindas palavras, pronunciadas na língua de Dante: «Ela é feia. Por que é que me trouxeste esta coisa?». Meryl respondeu de imediato à pergunta, num italiano certeiro como uma rajada de metralhadora, e Jessica Lange ficou com o papel (tratava-se do remake do King Kong, nada digno de Meryl, na verdade). 

Pouco tempo depois, Meryl foi selecionada como protagonista do remake de O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, mas o papel foi de novo entregue a Lange, porque Streep exigiu que o corpo de Jack Nicholson fosse tão exposto quanto o seu, nas cenas de sexo explícito. 

O sucesso de Meryl Streep deve-se tanto ao seu imenso talento quanto à sua capacidade de superar obstáculos e desgostos, assumir as suas escolhas e pronunciar com firmeza as palavras «sim» e «não». 

A inveja perante a fama e a felicidade nunca se ocupa em analisar o valor das dificuldades, do trabalho e do caráter; compraz-se na vitimização e no ódio. 

Por isso exulta de alegria quando vê a vida dos famosos desmoronar-se: os divórcios de Johnny Depp ou de Angelina Jolie e Brad Pitt põem o mundo inteiro em estado de esfuziante hilariadade: que bom, afinal eles também se espalham! Às gargalhadas somam-se doses reforçadas de ceticismo: «Vocês, totós, ainda acreditam que o amor pode durar a vida toda? Ora vejam. Tão espertos, nós, os desiludidos da vida, solitários, cínicos, supremamente inteligentes na nossa imunidade a qualquer cheiro de coisa eterna, sublimemente iconoclastas, relativistas, desprezadores dessa burguesa quinquilharia da partilha e da permanência, percorrendo euforicamente a serpenteante estrada que vai do nada a coisa nenhuma». 

Mas claro que o amor pode durar a vida toda – e dura, com uma frequência muito maior do que aquela que é noticiada. 

Dura, em milhões de vidas anónimas como na de Meryl Streep. Ou na do escritor inglês David Lodge. 

Há dias, no palco em que se apresentou, no Festival Internacional de Cultura, em Cascais, perguntei-lhe quais foram os momentos fundamentais da sua vida. Respondeu que o mais importante tinha sido a sorte de ter conhecido a sua mulher, Mary, no primeiro dia em que entrou na universidade, aos 18 anos. Têm agora ambos 81 anos. Passaram juntos muitos tempos difíceis. Têm 3 filhos, um dos quais com síndrome de Down. Estão juntos há 63 anos. São visivelmente felizes; ele é discreto, mas não se cansa de olhar para ela, o que se compreende; Mary tem uma gargalhada do tamanho do sol e uma leveza de andorinha.

Diz Lodge que pensa muitas vezes que toda a sua vida teria sido diferente se aquela jovem loira e determinada tivesse escolhido estudar outra coisa, em vez de literatura; e ela explica que só foi para aquele curso por insistência dos professores do secundário, que a achavam demasiado dotada para as letras para seguir as Belas-Artes para as quais se sentia mais inclinada – tanto que acabou por se meter de novo na Universidade já depois dos 60 anos, para cumprir essa vocação desviada. 

Lodge publicou recentemente, em Inglaterra, a primeira parte das suas Memórias, sob o título Quite a Good Time to Be Born (qualquer coisa como: Nascido numa Boa Época), título otimista para resumir a vida de alguém que nasceu quatro anos antes da 2.ª Guerra Mundial e passou a infância entre os bombardeamentos de Londres, entre mortos e feridos, com severíssimas restrições económicas. 

Descreve deste modo a sua segunda impressão da rapariga que viria a ser a mulher da sua vida, quando, depois de a ter visto pela primeira vez, a encontrou caminhando com duas amigas debaixo do sol do outono: «A sua beleza tocou-me de uma forma mais intensa do que antes, embora ela não parecesse ter qualquer consciência disso. Tinha um ar forte e confiante, cintilante de saúde e aparentava uma felicidade simples de estar onde estava». 

A simple happiness at being were she was, escreve Lodge. Esta felicidade simples não tem imprensa – e isso tem contribuído muito para o estado desesperado do mundo em que vivemos: um mundo cada vez mais atulhado pelos muros da pretensão intelectual, da glória e do riso engarrafado, que sai em golfadas e se deita fora como uma garrafa de champanhe. As bombas do cinismo matam tanto como as outras.