O primeiro choque frontal Marcelo-Costa

Qualquer espécie de geringonça que coordene o país inclui sempre um Presidente da República. Com um Governo de maioria absoluta, um Presidente pode espernear, vetar, maçar, influenciar, irritar, demitir em caso de força maior (nunca aconteceu, nem sequer quando Sampaio acabou com o Governo de Santana Lopes).

Pode também dissolver a Assembleia da República – o ato que ficou conhecido como ‘bomba atómica’, porque não exige explicações do Presidente. Já demitir um primeiro-ministro é muito difícil. É preciso que o Presidente prove «o irregular funcionamento das instituições», uma expressão tão vaga que nunca ninguém lhe pegou. Por iniciativa presidencial, no passado recente, a Assembleia da República foi dissolvida em 1989 – quando Mário Soares, depois do minoritário Governo Cavaco ter caído no Parlamento na sequência de uma moção de censura, inviabilizou uma alternativa de Governo que juntava o PS aos eanistas – e a segunda vez, em 2004, quando Jorge Sampaio achou que já ninguém, da direita à esquerda, suportava Santana Lopes.

A ‘geringonça’ que coordena atualmente o país tem como Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa que é, há décadas, um fenómeno, um ‘português extraordinário’, imbatível em popularidade e, como o próprio cedo reivindicou, «afetos». Só isso lhe permitiu ser o candidato presidencial apoiado pelo PSD apesar de todo o desamor que o presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, lhe devotava. Marcelo, sendo um homem de direita, fundador do PSD e seu ex-líder, tem uma capacidade de arrastão de simpatia fora do seu campo político impossível de igualar. A sua imagem na Festa do Avante! do ano passado, de boné, vai ficar para a história das campanhas políticas. António Costa sempre gostou muito de Marcelo Rebelo de Sousa por várias razões, a primeira das quais porque é impossível não gostar. A relação dos dois remonta ao tempo em que Costa era aluno do ‘Professor Marcelo’. A política encarregou-se de prolongar os afetos. Entalado entre Maria de Belém (de quem não gostava) e de Sampaio da Nóvoa (que apoiava mas que cedo percebeu que não ia a lado nenhum), Costa preferia ter Marcelo na Presidência a levar com uma socialista impulsionada pelos odiados seguristas ou por um independente querido mas inexperiente. António Costa acreditou sinceramente que Marcelo iria ser um bom Presidente da República. Os primeiros seis meses, apesar dos vetos, primaram pela harmonia institucional. A imagem de Costa a segurar o guarda-chuva de Marcelo no 10 de junho em Paris é um mimo de iconografia política, uma serenata à chuva inolvidável.

A gora a festa acabou. O confronto entre Costa e Marcelo a propósito da lei do fisco foi duro. Costa insistiu numa lei que por antecipação o Presidente disse que não aceitaria. Marcelo decidiu então, pela primeira vez, enfrentar diretamente Costa. Não promulgar um decreto do Governo é um ato sem saída. Fica extinto, ponto. Ao invocar a frágil situação económica para vetar o decreto, Marcelo espeta uma faca no coração político do Governo. Afetos, afetos, política à parte.