Fernando Fontes. “A lei infantiliza os deficientes, pode até incitar os agressores”

Investigador defende que é preciso encarar a deficiência como um problema social, e não a tragédia pessoal de alguns.

Sociólogo em Coimbra, Fernando Fontes é o autor do mais recente retrato da vida das pessoas com deficiência em Portugal, num ensaio publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e apresentado na última sexta-feira no festival literário de Óbidos. Defende que é preciso uma revolução na vida das pessoas com deficiência em Portugal, das dificuldades no acesso ao trabalho à realidade escondida dos maus-tratos.

 

Como surgiu o interesse nesta área?

Tive um colega na escola primária com paralisia cerebral. Era um miúdo como nós, absolutamente integrado. Não tinha limitações cognitivas, eram essencialmente dificuldades motoras. Fez parte do percurso escolar connosco mas, a certa altura, foi para uma instituição para crianças e jovens deficientes. Poucos anos mais tarde, teríamos uns 18 anos, suicidou-se. Embora não tenha sido imediato pensar que iria dedicar-me a isto, foi algo que me chocou e foi talvez o primeiro momento em que me apercebi da exclusão em que vivem muitas pessoas com deficiência, e do devastador que isso pode ser para as famílias.

O sofrimento das pessoas com deficiência vem mais de fora do que de dentro?

Creio que vem muito de fora, mas as coisas estão interligadas. As pessoas com deficiência continuam a ser alvo de grande discriminação e opressão, quer pelas barreiras físicas, quer pelas barreiras psicológicas relacionadas com o estigma da deficiência e com as conceções dominantes sobre o que é um corpo normal. Esses preconceitos acabam por ser internalizados pelas pessoas com deficiência, o que tem um grande impacto na sua autoestima.
A discriminação faz-se sentir nas mais variadas esferas das suas vidas, mesmo nas mais íntimas, como as oportunidades de constituir família ou mesmo de viver a sexualidade de forma plena. Isto para não falar das dificuldades na escola ou no trabalho, onde não existem os apoios especializados necessários à sua inclusão ou os espaços físicos continuam inacessíveis.

Quando anda na rua, até com olhos de investigador, em que repara?

As barreiras arquitetónicas continuam a ser o lado mais visível desta opressão. Basta alguém andar na rua com um carrinho de bebé para ter noção disso. Os passeios continuam pejados de postes de eletricidade, caixotes de lixo e carros, e os edifícios continuam a ter escadas de acesso. Terminámos há algum tempo um projeto de investigação sobre pessoas com lesão vertebro-medular e um dos entrevistados disse uma coisa que me marcou. Tinha feito o processo de reabilitação física em Alcoitão e, nas suas palavras, o centro era como a terra prometida: a pessoa, ali, até se esquecia da deficiência. Mal chegavam à rua e encontravam as primeiras escadas, era como se tocasse um sininho a lembrá-los da sua incapacidade. As barreiras não limitam apenas a mobilidade, são um fator de opressão daqueles que as enfrentam no seu dia-a-dia.

O que leva ao isolamento?

Em alguns casos, sim. Se juntarmos a isto o facto de os últimos censos nos dizerem que 60% das pessoas com dificuldades motoras no país vivem em edifícios com três ou mais pisos, em edifícios sem elevador e sem entrada acessível para cadeira de rodas, percebemos a gravidade da situação. Há pessoas com deficiência a viverem enclausuradas nas suas próprias casas.

Um dado que cita no seu livro prende-se com a taxa de emprego: é metade da população em geral. E 79% dos que estão inativos são reformados, embora apenas 6% fossem incapazes para o trabalho. O que explica estes números?

O preconceito. Tem havido iniciativas de promoção do emprego, incentivos aos empregadores para adaptação do posto de trabalho e benefícios fiscais, mas o facto é que o preconceito continua a existir e muitas pessoas com deficiência são imediatamente excluídas nas entrevistas.

E as quotas de emprego, de 2% no privado e 5% no Estado?

Não tiveram grande impacto, quer pelo congelamento, durante muito tempo, do acesso à função pública, quer porque o recurso à contratação coletiva é cada vez mais substituído pela contratação individual, onde é muito fácil encontrar subterfúgios para preterir um candidato com deficiência face a outro sem. Garantir mais emprego é muito importante porque não é apenas um problema de autonomia financeira. Durante muitos anos dizia-se que as sociedades atuais eram de lazer, mas os estudos sociológicos mais recentes têm mostrado a manutenção da centralidade do trabalho nas nossas vidas.
É o trabalho que nos permite organizar o nosso dia-a-dia; não é apenas uma forma de sustento, mas sobretudo de realização pessoal. Quando vemos que apenas uma minoria das pessoas com deficiência trabalham, dá para imaginar o impacto psicológico.

E o impacto financeiro consegue ser mitigado pelas famílias?

Muito dificilmente. O subsídio mensal vitalício atribuído às pessoas com deficiência com mais de 24 anos é de 176,76 euros.
É claramente insuficiente se tivermos em conta que as pessoas com deficiência em Portugal têm um custo de vida acrescido que varia entre os 5100 e os 26 300 euros por ano. Depois, ao mesmo tempo que dá 176 euros às pessoas, o Estado paga aos lares que recebem pessoas com deficiência mais de 900 euros/mês.

É preciso nivelar os valores?

Seria um avanço importantíssimo. Tem havido pressão para isso por parte do Movimento Vida Independente e da associação dos (d)Eficientes Indignados, e creio que o governo está sensibilizado para a necessidade de dar às pessoas com deficiência condições para que elas possam gerir as suas vidas em vez de estarem condenadas a ficar dependentes em termos financeiros e de apoio no dia-a-dia de familiares ou, na falta destes, serem obrigadas a ingressar num lar.

A ideia de “vida independente” tem estado a ganhar força. O que está em causa?

No final do ano passado começou o primeiro projeto-piloto financiado pela Câmara Municipal de Lisboa, com cinco utentes, e a expectativa é que, até ao final do ano, saia legislação para poder replicar este projeto noutras zonas do país. No fundo, a ideia é permitir que as pessoas com deficiência tenham a mesma liberdade de escolha, o mesmo controlo e a mesma liberdade nas suas casas, no trabalho e na sua comunidade que as pessoas sem deficiência.

Como? São residências de transição?

Não. Mediante um processo de avaliação e cálculo do número de horas diárias de assistência pessoal necessárias, a pessoa recebe apoio financeiro para contratar um assistente pessoal. Repare-se que o impacto disto vai muito além da autonomia.
É dar liberdade a pessoas que, hoje, muitas vezes não a têm, até porque, estando dependentes da família, não têm qualquer poder reivindicativo. Além disso, a dependência tem um enorme impacto na vida familiar e íntima das pessoas. No projeto da lesão medular, uma das coisas que constatámos foi a elevada incidência do divórcio após a lesão. É muito desgastante um companheiro ou uma companheira transformar-se de repente num prestador de cuidados. Tem impacto a todos os níveis da vida do casal.

No ensaio aborda a problemática da violência. Analisou o “Correio da Manhã” e identificou 129 casos entre 2006 e 2012.
O que mais o surpreendeu?

O que me chocou mais foi talvez perceber o tipo de crimes mais comuns: abusos sexuais e violação de mulheres jovens com deficiência, sobretudo com dificuldades de aprendizagem.

O Estado podia fazer mais?

Sim, claro, apesar de algumas iniciativas de louvar como os programas de sinalização de casos da PSP ou da GNR.

De que quase nunca ouvimos falar.

É um facto. Acho que é preciso maior sensibilização, mas isso passa também por uma mudança na legislação. Atualmente, o Código Penal apenas refere a deficiência como condição de agravamento das penas de crimes variados, do homicídio ao abuso sexual, mas fá-lo de uma forma que infantiliza e reforça a ideia de vulnerabilidade das pessoas com deficiência, colocando-as no rol das pessoas particularmente indefesas, o que além disso pode, de alguma forma, até incitar os agressores.

O que devia mudar?

Parece-me que é preciso reconhecer que, tal como a violência racial, os crimes relacionados com a orientação sexual ou identidade de género, os crimes contra as pessoas com deficiência resultam muitas vezes do estigma e do preconceito, da ideia de que as pessoas são inferiores e podem ser vítimas de abuso ou escravizadas, como aconteceu durante mais de 20 anos com um jovem de Vila Verde. São crimes de ódio, motivados pelo preconceito.

No ensaio diz que os estudos internacionais mostram que, em 48% dos casos de violência contra deficientes, as situações se prolongam durante meses ou anos. Pode haver muitos casos escondidos?

Nos EUA estima-se que a probabilidade de alguém com deficiência ser vítima de violência é 1,5 vezes superior; no Reino Unido, quatro vezes. Em Portugal não temos dados, os relatórios nacionais de segurança interna continuam sem registar o fenómeno, mas não temos razões para pensar que será diferente.

Escreve que os avanços da medicina e o envelhecimento da população transformam cada ser humano numa potencial pessoa com deficiência. É o argumento que faltava para a revolução que defende ser necessária na resposta à deficiência?

Espero que sim.

Não é um bocado egoísta?

Pode ser, mas é a realidade. Se não o fizermos pelos outros, que o façamos por nós. Aliás, nem é preciso haver deficiência. Criar acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida é criar acessibilidades para toda a gente.

Que mensagem gostava de passar com este livro?

Temos de deixar de olhar para a deficiência como uma tragédia pessoal. É verdade que continua a existir sofrimento e ansiedade, as famílias têm receio quanto ao futuro e a quem cuidará dos seus filhos quando não estiverem cá, mas um aprofundamento da redistribuição social, mais políticas públicas consequentes e menos preconceito permitiriam dar às pessoas uma maior qualidade de vida.